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August 2, 2020

Amamentação e sexualidade Breastfeeding and sexuality - Parte 2

Gilza Sandre-Pereira

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Seio de mulher, seio de mãe

Essa dupla representação dessa parte específica do corpo feminino se insere na tradicional oposição antropológica entre natureza e cultura. Considerado em termos da natureza, o ser humano é classificado como um animal mamífero e, portanto, as mamas das 'fêmeas' humanas têm uma função específica, ligada à alimentação da sua 'cria'.25 Mas o homo sapiens é um animal cultural, e no mundo da cultura o seio feminino pode perder a preeminência biológica de sua função e tornar-se a base de diferentes representações, como a caridade,26 e aquela que nos interessa de perto neste artigo, o erotismo. O seio pode ser ou não erótico e ligado à sexualidade segundo diferentes culturas. Segundo Clellan Ford e Frank Beach,27 que estudaram as práticas sexuais em 190 diferentes culturas no mundo, somente 13 entre elas conferiam um valor erótico aos seios, tendo seu aspecto físico um importante papel para a atração sexual masculina e sendo sua estimulação uma parte do ato sexual.

Na cultura ocidental o seio foi inscrito durante muito tempo em uma percepção funcional alimentar, sendo muito recente a erotização dessa parte do corpo feminino. Ao traçar a história da nudez, Jean-Claude Bologne mostrou que, em diferentes sociedades e em épocas diversas, certas partes dos corpos femininos e masculinos, mesmo as mais íntimas, podiam ser mostradas.28 Segundo esse autor, o significado do olhar lançado sobre a nudez mudou muito ao longo dos séculos no Ocidente, e foi apenas no final da Idade Média que a nudez feminina e a visão do nu passaram a ser identificadas com o desejo e a ter a conotação erótica que conhecemos hoje. O seio, no entanto, permanece discreto até o surgimento do 'amor romântico', no século XVIII. Coincide com essa mudança o nascimento da forma moderna do sentimento conjugal.29 Relação de sedução e de amor, o casamento se insere na perspectiva do desejo provocado pela visão do corpo feminino, que se mostra de uma certa maneira e seduz. E são os seios que atiram o olhar e fixam a atenção nesse jogo de sedução. As alterações que aparecem em termos da maneira de se vestir evidenciam essas mudanças, através do surgimento dos vestidos com decotes sensuais que valorizam os seios sem os desvelar completamente.

Na sociedade ocidental moderna, a função estética do corpo, e do seio, em particular, se hipertrofiou. Sua forma, seu volume, sua consistência devem se alinhar a um modelo preciso. Nesse contexto, o seio é percebido primeiro e antes de tudo como um órgão sexual, de grande apelo erótico. Mas a utilização dos seios na sua função biológica da amamentação não está completamente desligada da possibilidade de uma experiência sensual. Nas palavras do psicanalista francês Bernard This, "Aquelas mulheres que amamentaram seus filhos com prazer sabem que uma mulher pode chegar ao orgasmo quando a criança mama. Mas, silêncio, os homens não querem saber! O prazer deve aparecer apenas nos braços do amante?"30

Não é recente a idéia de que a prática da amamentação tem implicações com a sexualidade. No século XVI, o humanista e filósofo espanhol Juan Luis Vives, na sua obra De institutione feminae christianae31 (1523), advertia que "As delícias são o que mais debilita o corpo; por isso, as mães perdem os filhos quando os amamentam voluptuosamente", em uma alusão ao prazer sentido pela mãe e pela criança na amamentação - um prazer ilícito que a mãe se proporciona e que causaria a perda moral da criança.32 Mais tarde, na França do século XVIII, quando a relação entre a mortalidade infantil e a prática de enviar os bebês para serem amamentados por amas-de-leite mercenárias estava sendo demonstrada, o médico Jean-Claude Des-Essartz procura encorajar as mulheres a amamentarem elas mesmas seus filhos, através do testemunho de uma jovem mãe sobre suas sensações físicas ao colocar o filho ao seio pela primeira vez: "É difícil - diz ela - de explicar o que se passou comigo, eu senti uma comoção que eu só posso comparar àquela que é produzida por uma centelha elétrica; tão intensa que ela, ela me ergueu e me fez me aproximar mais do meu filho, ela logo se espalhou por todo o meu corpo produzindo um calor delicioso, ao qual sucedeu a calma de uma volúpia inexprimível, quando meu filho abocanhou meu mamilo e fez sair o licor que a natureza e o meu carinho lhe destinavam."33 Uma descrição de prazer semelhante a de um orgasmo.

No início do século XX os manuais de puericultura, bastante numerosos a partir do final do século anterior com o advento da puericultura científica da era pasteuriana, não mencionavam mais o prazer ao falar sobre o aleitamento materno. Aparentemente, só a psicanálise se referia à existência de um tal prazer, chamando a atenção para o fato de que a amamentação é uma relação sexualizada, prazerosa para a mãe e psicologicamente fundadora para o bebê. A sexualidade associada à amamentação foi apontada por Freud, ao falar sobre a sexualidade infantil: "Quem já viu uma criança saciada recuar do peito e cair no sono, com as faces coradas e um sorriso beatífico, há de dizer a si mesmo que essa imagem persiste também como norma da expressão da satisfação sexual em épocas posteriores da vida."34 Mas o ato de oferecer o seio, considerado como uma zona erógena, para o bebê sugar também é compreendido por Freud como um ato de significação sensual para a mulher. Segundo esse autor, a mãe olha para a criança "com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como um substitutivo de um objeto sexual plenamente legítimo."35 Tais afirmativas tendem a chocar a princípio e serem mesmo consideradas sacrílegas - e Freud faz referência a esse fato -, uma vez que se colocam em frontal oposição à imagem do amor maternal assexuado, 'puro'.36

De acordo com os depoimentos de meus informantes, as representações específicas sobre o seio têm um papel importante na sexualidade durante o período da amamentação. O seio maternal e o seio erótico podem ou não ocupar o mesmo espaço físico, engendrando diferentes possibilidades de experiências de acordo com a maneira como cada indivíduo resolve essa aparente dicotomia.

Link para o artigo original e completo:

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2003000200007


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