𝐬𝐨𝐟𝐭 𝐚𝐜𝐡𝐞.
haerin acordou cedo, antes mesmo do despertador tocar. o silêncio do quarto parecia mais pesado do que o normal. ela piscou forte e se sentou na cama. precisava resolver a sua vida. precisava arranjar o dinheiro para pagar soomi. por mais querida que a veterinária fosse, ela não podia ficar bancando o tratamento da gatinha. ela também tinha contas para pagar.
a artista abriu o aplicativo do banco no celular. não era o suficiente para pagar a dívida e se sustentar pelo resto do mês. ficou olhando por alguns segundos, como se o dinheiro pudesse aparecer por mágica. mas não apareceu.
haerin puxou sua caixa de lembranças debaixo da cama e começou a separar tudo que poderia vender: itens de colecionador do show que ela tinha jurado nunca abrir mão; o chaveiro que ganhou da avó quando entrou na universidade; pulseiras de artistas que ela amava. cada objeto deixava um aperto estranho no peito, mas ela lembrava de sushi, e continuava separando os objetos.
separou também algumas peças de roupa que havia feito para si mesma, que tinha dedicado tempo, material e carinho ao fazer. mas era necessário.
na sua cama, espalhou folhas, anotações de gastos e uma calculadora velha que apitava a cada número digitado.
antes de sair da jia, pegou dois cobertores velhos, finos, mas limpos. colocou-os na mochila, determinada a reforçar o abrigo improvisado dos outros gatinhos. no caminho, entrou em um mercadinho ali perto e pegou uma caixa de ração barata. olhou o preço. engoliu seco. sentiu o rosto começar a arder de frustração.
no café, o dono do palette a viu parada na porta e perguntou, já desconfiando:
— problema, haerin-ah?
— um dos meus gatinhos está internado… eu preciso de dinheiro. tem como me passar uns horários extras?
ele franziu a testa, pensou por alguns segundos e por fim assentiu.
— volta mais tarde. vejo o que arranjo.
haerin agradeceu e foi até o beco ao lado do café. os gatinhos estranharam quando ela se ajoelhou no chão gelado para arrumar tudo, mas foram se aproximando aos poucos. nori miou baixinho. haerin passou a mão na cabeça dela com cuidado.
ajeitou água limpa, dividiu a ração em dois potinhos de plástico e arrumou os cobertores dentro da caixa onde costumavam dormir. ficou sentada ali alguns minutos, até os dedos começarem a doer de tanto frio. quando levantou, sentiu que o peso no peito ainda estava lá, mas um pouco menos sufocante.
na clínica, pagou o pouco que havia conseguido juntar — sabendo que ainda faltava muito. quando saiu para o frio novamente, respirou fundo como se estivesse tentando puxar coragem do ar gelado.
o resto do dia foi um borrão. quando voltou à jia, havia duas notificações no celular: encomendas. um fio de esperança finíssimo, mas existente.
depois de comparecer aos jogos da jia, ela começou a desenhar. desenhou até os dedos doerem, até a borracha quase virar pó, até o lápis deixar um calo no dedo. o quarto se encheu de folhas, esboços, respingos de tinta. e ela, no centro, com olheiras profundas, mas focada.
as notificações de pagamento começaram a pingar. pouco. às vezes quase nada. mas era o suficiente para seguir mais um pouco.
haerin acordou com o despertador desta vez. o peito ainda pesado, mas a rotina a empurrou para fora da cama. verificou o saldo, suspirou, fez um café fraco e terminou mais um pedido de desenho. depois, ainda cedo, caminhou até a clínica da veterinária.
quando empurrou a porta, o cheiro familiar de desinfetante e ração a recebeu junto com a voz suave de choi soomi:
— haerin-ah? você voltou cedo. quer ver a sushi?
ela assentiu. e ao ouvir que a gata havia passado a noite estável, sentiu o nó em sua garganta finalmente desatar.
— ela está reagindo bem ao soro — soomi disse, com aquele tom calmo de sempre. — se continuar assim, talvez sexta a gente converse sobre alta.
haerin respirou fundo como se tivesse prendido ar a semana inteira. acariciou a cabeça da sushi através da grade da baia, falando baixinho como se a gata pudesse responder.
de tarde, voltou ao café. o dono avisou que teria mais dois turnos para ela naquela semana. não era muito, mas já era alguma coisa. haerin agradeceu com uma reverência curta, quase tímida.
no caminho de volta ao campus, a culpa pesou como uma pedra no estômago. ela tinha faltado duas aulas seguidas naquela semana — e não eram aulas leves. era conteúdo do ateliê, matéria prática, coisa que contava ponto. coisa que uma bolsista não podia simplesmente perder. a jia era rígida, e haerin sabia que, se começasse a faltar demais, poderiam questionar seu rendimento. e se questionassem seu rendimento, poderiam mexer na bolsa. a simples ideia fez seu peito apertar.
ela tentava justificar para si mesma: é pela sushi, é emergência. mas a culpa vinha mesmo assim, insistente. como se dissesse que ela estava falhando. que estava abandonando tudo. que estava ficando para trás.
mesmo assim, ela continuou andando. parar significava pensar, e pensar doía.
à noite, após os jogos do ateliê, recolheu mais roupas para vender e fez as contas de novo. a calculadora apitou. ela fechou os olhos por um segundo, rezando para qualquer força no universo ajudar só um pouco.
o cansaço começou a bater de verdade.
haerin teve aula de manhã, mas suas anotações ficaram confusas, rabiscadas, quase sem sentido. a cabeça estava na clínica, nas contas, nos gatinhos.
na hora do almoço, foi novamente ao beco. o frio estava ainda pior, e nori correu até ela assim que a viu, esfregando a cabeça na barra da calça. mocha miou baixinho, seguida por mochi e tokki, sempre atrasadinhos.
ela ajeitou os cobertores, colocou mais um pouco de ração e ficou conversando com eles baixinho, como se aquilo pudesse acalmar seu próprio coração.
— a sushi volta amanhã… eu acho… vocês aguentam só mais um diazinho, tá?
um dos turnos extras no palette caiu no início da noite. ela estava exausta, e mesmo assim sorriu para os clientes, anotou pedidos, limpou mesas, lavou copos. quando chegou no dormitório, quase dormiu sentada, mas tinha mais dois desenhos para entregar. além disso, era o último dia dos jogos e de todo o evento que estava rolando na jia.
haerin acordou com o coração acelerado, como se estivesse atrasada. mas era só ansiedade.
colocou um casaco pesado, prendeu o cabelo às pressas e saiu quase correndo para a clínica, sem nem passar no café.
somi a viu entrar e sorriu de um jeito que já entregava a resposta.
— ela está bem. bem de verdade desta vez.
o ar que haerin soltou pareceu quente demais para a manhã fria. ela levou a mão ao rosto e percebeu que estava tremendo. a pequena, ao ouvir sua voz, miou fraquinho dentro da baia — o suficiente para desmontar haerin por dentro.
— obrigada… obrigada, soomi. de verdade.
somi respirou fundo antes de continuar:
— haerin-ah… a sushi está melhor, reagindo ao tratamento. mas…
aquela pausa não poderia ser nada bom.
— seria bom que ela ficasse mais uns dias antes de voltar pra rua. ela ainda está fraca. mais dois ou três dias seriam ideais.
haerin sentiu o chão bambear sob os pés. mais dias significavam mais dinheiro. e, pior ainda, significavam o tempo que ela não tinha.
— eu… — sua voz falhou. — eu não posso levar ela pro dormitório da jia. eles não permitem animais. de jeito nenhum.
somi assentiu, como se já esperasse.
— eu imaginei. por isso queria falar com você antes. a questão é que… ela realmente não devia voltar pro frio agora.
haerin fechou os olhos. o pânico e o desespero se misturaram num nó sufocante. ela não tinha onde colocar a sushi. não tinha dinheiro para hospedagem. não tinha família em seul.
— eu vou dar um jeito — disse, mesmo sem saber qual.
somi tocou seu ombro, num gesto quase fraternal.
— você sempre dá.
haerin apenas baixou o olhar, sem ter certeza se era verdade.