November 18, 2020

O PEQUENO BATMAN

Naquela manhã cheia de sol, cujo brilho intenso castigava-lhe os olhos, de forma inclemente, ao esperar um táxi que levá-lo-ia à clínica, após passar dois dias seguidos com febre alta, dessas renitentes, que não dão trégua alguma, com dores pelo corpo todo, parecendo mesmo que levara uma impiedosa surra de chicote, com o olhar cansado de quem não dorme direito há várias noites, sentindo-se bastante fraco, Antonino, cujo nome pomposo recebera do seu pai em homenagem ao imperador romano que sucedera Adriano, no trono, sendo considerado o quarto dos cinco bons imperadores, por historiadores, finalmente chega ao seu destino.

Com passos incertos atravessa o hall de entrada, indo até à recepção, onde uma jovem, depois de verificar a lista de consultas do dia do Dr. Kanemann, informa-o que ele será o próximo a ser atendido - e diz-lhe, polidamente, que pode sentar-se um pouco enquanto aguarda sua vez.

Olhando em volta, pensativo, ele percebe que a antessala está repleta de pessoas, algumas entretidas com os próprios pensamentos, enquanto outras fingem uma alegria pueril sem sentido algum, conversando animadamente umas com as outras, rindo à socapa sabe Deus de quê.

Foi nesse momento que Antonino avistou uma criança, usando uma camiseta colorida com a estampa do Batman, sentado quieto ao lado de sua mãe, apresentando uma palidez infinita, cujas mãos, febris, não desgrudavam um só instante do carro do homem morcego, que ganhara de presente no último Natal, talvez pensando como ele poderia tirá- lo dali o mais depressa possível, levando-o de volta para o aconchego do seu lar.

Ao ver essa cena, Antonino sentiu imediatamente uma profunda compaixão pelo garoto, com os olhos chegando mesmo a lacrimejar, lembrando-se da perda recente do seu netinho, vítima inocente de uma leucemia crudelíssima, que não lhe dera tempo sequer de distender as asas para os primeiros voos de aprendizado.

Aproximando-se lentamente do menino franzino, tentando esboçar-lhe um sorriso, em meio ao turbilhão de recordações que povoavam sua mente, gentilmente pergunta-lhe quantos anos tem. Num gesto automático, sem levantar a vista para o estranho, o guri mostra-lhe sete dedos, nas mãozinhas espalmadas, por coincidência a mesma idade do filho do seu primogênito que Deus chamara precocemente para morar com Ele.

Com a emoção boiando ligeira no rosto afogueado, encerrando tristes lembranças, na alma, que afluem sem parar feito fonte borbulhante de riacho novo, com um leve menear da cabeça cumprimenta à senhora, que se desvela em acalmar a criança, afagando docemente seus cabelos revoltos como um mar encapelado, almejando, em seguida, numa fala rápida, que tudo corra bem com o pequenino.

Poucos minutos se passaram quando a porta do consultório se abriu, ouvindo, ato contínuo, distintamente, seu nome ser chamado pelo médico, um velhote de ascendência germânica, metido num jaleco frouxo, que descia desajeitadamente até os joelhos.

Emudecido pelo sofrimento agudo do batmanzinho, que chispava nos seus olhos infantis, Antonino se perguntou por que Deus permitia tanta dor, regada a lágrimas sem fim, perfiladas, austeras, desde priscas eras nos caminhos da humanidade.

Mas, ao recordar-se, por fim, que é inteiramente vã a pretensão humana de querer compreender alguns rumos dos planos divinos - e que o Rabi de Nazaré sofrera dores atrozes, por todos nós, deixando-se imolar no madeiro por amor incondicional aos homens, inclusive àqueles que não têm boa vontade, apesar também de nossa pequenez, tudo para poder nos levar, enfim, à estrada da luz, ele intimamente fez uma breve prece ao Senhor, rogando a Ele perdão por suas conjecturas que já beiravam o precipício das blasfêmias.

Com o coração um pouco mais aliviado, ele agradeceu aos céus a dádiva preciosa da concessão de tantos anos - e, principalmente, de ter convivido, mesmo que de forma fugaz, com o seu primeiro neto, que veio ao mundo para encantar quem o conheceu, através da resignação superior diante da cruz que tivera que carregar tão cedo, sem nada reclamar, permitindo-se enfeixar, aqui e ali, nos dias em que se sentia melhor, um buquê de perfumadas risadas, que ribombavam pela casa inteira, suplicando ao Criador que se compadecesse do pequeno Batman, restituindo-lhe a saúde para felicidade suprema de sua família.

AVELAR SANTOS

A/S CAMOCIM- CE

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