OS SINOS DA MEIA NOITE
Era noite alta! Do céu descia uma cascata prateada de luz, que parecia se desmanchar em pequenos cachos de luminescência mágica, afogando-se, um a um, pobrezinhos, nas águas turbilhonantes da maré enchente, pelos molhes, deixando entrever, ao longe, a legião engalanada dos manguezais da Ilha da Testa Branca.
Como de praxe, às onze horas da noite, a Usina de Força parara de funcionar, deixando tudo às escuras.
A cidade dormia! Tudo era silêncio!
No cais, dois barcos camaroneiros cochilavam, ao lado de uma jovem traineira, cujos sonhos, cheios de gaivotas voando em bandos ao sol matinal, eram embalados pelo matraquear soturno de seus motores, em baixa rotação, poupando ao máximo energias vitais para mais um dia de lide intensa que se avizinhava.
Desde cedo, o solitário guarda noturno do porto também fora dormir, a reboque de algumas doses extras de cachaça, que bebera, horas atrás, no Avenida Bar, na companhia de amigos de farras homéricas semanais, certamente não se deixando acordar tão cedo nem se um canhão fosse disparado a pouca distância.
Assim, dormindo a sono solto, despreocupado do mundo, e do trabalho, não viu quando um vulto se esgueirara, perto do portão de entrada, transpondo-o, em seguida, com facilidade, deslizando ligeiro, sob o facho intermitente do luar, até o escritório geral das docas.
Deixando-se ficar um pouco mais, na penumbra, constatando que não havia movimentação, no interior do prédio, munido de uma gazua, sem fazer qualquer barulho, o ladrão consegue abrir, sem dificuldade, a porta que dá acesso à sala da chefia, cujo caminho sabia de cor, dirigindo-se rapidamente até um anexo lateral onde se encontrava o objeto de sua busca.
Dentro do recinto, de posse de uma pequena lanterna, vê uma vez mais a combinação mágica dos números do segredo do cofre, rabiscada numa folha amassada de papel, que levara por segurança, no bolso da calça, iniciando, em seguida, com atenção, a abertura do mesmo.
Como ajudante do diretor, por mais de três anos, tivera acesso certas vezes àquele lugar, a seu pedido, a fim de guardar documentos, além de numerários de pequeno valor.
Assim, no cotidiano, conhecia muito bem a rotina da Mar Alto & Cia., desfrutando de bom conceito, dentre seus pares, até cair em desgraça por conta do acobertamento das fraudes contábeis, perpetradas pelo seu superior, abrindo, dessa forma, após ulterior investigação interna, motivos robustos para a demissão de ambos.
Muito magoado com aquela situação, porquanto com a fuga repentina do antigo chefe a infâmia recaíra somente sobre seus ombros, jurara para si mesmo vingança.
Sabendo que o pagamento dos funcionários da empresa era feito quinzenalmente, e o dinheiro ficava depositado nela própria, ele escolhera a data de recebimento do décimo terceiro dos trabalhadores para realizar o roubo que planejara nos seus mínimos detalhes.
Tudo transcorria sem atropelos até que ele ouviu o insistente badalar do relógio da Matriz anunciando meia noite.
E, para seu azar, o vigia acordara justo naquela hora, querendo mitigar a sede intensa que o consumia, pegando, debaixo da rede, a quartinha de água fria que costumava levar consigo.
Sonolento ainda, o guarda aproxima-se da janela, que deixara aberta para sentir o vento marinho, e, para espanto seu, observa uma luminosidade, no complexo da diretoria, ao lado, refletida nas vidraças dos portais, e, tomando consciência daquilo, resolve averiguar do que se tratava.
Nisso, de súbito, o larápio tem uma estranha premonição, com pensamentos mórbidos fustigando impiedosamente sua imaginação.
E, sem atinar direito por que, resolve que o melhor a fazer é escafeder-se dali o mais depressa possível.
Um único tiro foi ouvido por toda redondeza, acordando de chofre o populacho, menos pelo pobre gatuno que não tivera tempo sequer de esboçar qualquer reação.
Nesse instante, a coruja piou no solar da velha estação ferroviária!
AVELAR SANTOS
A/S CAMOCIM-CE
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