January 4, 2021

RUA DO SOL

Das recordações dos verdes anos da mocidade, na cidade do meu coração, uma que aclara o passado mais longínquo, trazendo-o à tona, dos porões úmidos da mente, em pinceladas coloridas de Gauguin, cheias de luz, é a lembrança da legião de pés de monguba que perfumavam a Rua do Sol.

Árvore frondosa, de copa densa, arredondada, refúgio seguro do passaredo, que tecem seus ninhos escondidos por entre as ramagens, a monguba adapta-se bem a condições diversas de solo, e clima, possuindo flores exóticas, amarelas, de pontas vermelhas, desfrutando de excelente reputação, como planta ornamental, por todas essas qualidades.

No Camocim de antanho, pequenina, radiosa, que carrego inteira dentro de mim, as artérias, por onde a pacata vida citadina pulsava, estavam delineadas no plano original de tablado de xadrez da urbe.

Destacando-se de suas irmãs, pela arborização peculiar, única, o que lhe dava um charme todo especial, a Rua do Sol, reduto da burguesia, estendia-se, de forma longilínea, no sentido norte-sul, abraçando casarões seculares no seu caminhar.

A um passo da Matriz, ostentando rara beleza, ficava o imponente solar dos Taumaturgo, de arquitetura rebuscada, estilo provençal, voltado, soberbo, para o leste, colhendo primeiro o brilho das manhãs, cujo belo jardim recendia a jasmins e bogaris.

As demais casas da rua, de altura incomum, com inúmeros aposentos, de quintais gigantescos, debruçavam-se, altaneiras, sobre o verde oliva das mongubas, que se perfilavam a seus pés.

Elas falavam, eloquentes, por si mesmas, da grandeza dos tempos idos de bonança sem fim, que tivemos um dia, oriundos da extração do ouro branco, o sal, aliado à comercialização dos produtos de além-mar, vindos a bordo dos navios que se revezavam continuamente no porto.

Nesse tempo, nas festas religiosas, no intuito de fomentar ainda mais o congraçamento das famílias, havia os leilões, patrimônio cultural da gente interiorana, que, na sua simplicidade, nos traziam tanto contentamento.

Reunidos ao lado de amigos, víamos nossos pais, com alegria infantil, arrematarem as prendas, que consistiam de bolo de milho, rocambole, pães doces, tortas salgadas, doces caseiros, instrumentos agrícolas, passando também por animais, galinhas, perus, patos, capotes, inclusive ovelhas e garrotes.

Depois da missa, alusiva ao santo que se festejava, ao lado da igreja, num quadrilátero cimentado, iluminado fracamente, onde somente a circulação de pessoas era permitida, o leilão acontecia, sempre muito participativo, disputado, sob a batuta incomparável de Monsenhor Inácio Magalhães, cuja renda era revertida inteiramente para obras de caridade e manutenção da paróquia.

Certa vez, nos festejos de São Francisco, meu pai disse-me para eu ir à casa de D. Sinhá, esposa de um rico comerciante local, que morava justamente na Rua do Sol, a fim de recolher uma oferta e levá-la à casa paroquial.

Era finzinho de tarde! Acompanhado de dois irmãos, dirigi-me à elegante residência, sendo recebido gentilmente pela velha senhora, após falar à empregada, que nos atendera, no portão, do que se tratava.

De suas mãos fidalgas, recebi um enorme bolo de carimã, cuja aparência, e odor inconfundível, despertaram em mim pensamentos nada cristãos, dando-me imediatamente água na boca.

De posse da prenda, saí dali, às pressas, antes que a tentação de devorar aquela guloseima fosse algo maior que eu.

Pelo caminho de volta, o cheiro do bolo confundia-se com o perfume das mongubas, atiçando os sentidos, chicoteando vezes sem conta o cavalo da gula, que galopava ligeiro, querendo suplantar, na desabalada corrida, minha vontade de fazer a coisa certa.

Ao entregar finalmente a prenda, à D. Leonísia, responsável pelo evento, tirei um peso grande da consciência, imaginando, contudo, quem seria o felizardo que degustaria aquela delícia mais tarde.

Não tenho dúvidas que o meu anjo da guarda interveio fortemente a meu favor, naquele dia, instando-me a cumprir a contento a missão que me fora confiada.

AVELAR SANTOS

A/S CAMOCIM-CE