A FEB e a doutrina de Roustaing
A nova obra de Paulo Henrique de Figueiredo "Autonomia - a história jamais contada do Espiritismo" (2019), baseada em documentos que estão sendo recuperados do acervo deixado por Silvino Canuto de Abreu (1892-1980) comprovando os desvios sofridos pelo Espiritismo, após a desencarnação de Allan Kardec, traz à tona também importantes depoimentos do próprio Canuto. Num deles, "O Espiritismo e as religiões", Canuto comenta: "Por não querer seguir os preceitos de Kardec, é que a Diretoria da FEB - Federação Espírita Brasileira semeou incoerências à doutrina, desorientando os grupos que se deixaram embair por mistificações emanadas de falsas autoridades, aceitas de pronto sem maduro exame".
O roustainguimo - doutrina à margem do Espiritismo, criada pelo contemporâneo de Kardec, Jean Baptiste Roustaing (1805-1879) autor de "Os Quatro Evangelhos ou Revelação da Revelação" em 1865 na França (obra não aferida pelo critério da universalidade do ensino, metodologia defendida por Kardec, e com teses contrárias a princípios basilares da Doutrina), é, segundo Canuto, uma "extravagância religiosa", uma "nova seita", que, embora "fulminada pelo mestre com argumentos irrefutáveis, ao vir à luz", foi entronizada no Brasil pela FEB com pretensões de "impingi-la ao resto do mundo como sendo a verdadeira doutrina (de Kardec)". Para ele, "de fato, Roustaing é a antítese de Kardec", tendo criado uma "hibridez do Espiritismo com a superstição e o sobrenatural", resultando daí, com a equivocada atuação da FEB, "um tecido de incongruências".
Para Canuto de Abreu, a FEB, ao adotar o roustainguismo, mesclou o Espiritismo com uma "extravagância religiosa".
Espiritismo não é religião
"O erro de Bezerra de Menezes e de outros pioneiros da FEB, segundo Canuto, foi o de acharem que para ser espírita seria necessário ser devoto de Cristo."
Para Canuto, "O Espiritismo entrou no Brasil por adesão de algumas inteligências corajosas", entre as quais cita Bezerra de Menezes, Dias da Cruz e Bittencourt Sampaio. Mas, acrescenta: "Infelizmente os hábitos devocionais, trazidos da Igreja por aqueles lidadores preponderaram na sua nova orientação, imprimindo-lhe uma feição cultural em desacordo com a Doutrina", e complementa: "Ao parecer deles (e tal foi o erro inicial) não se podia ser espírita sem ser forçosamente devoto de Cristo". Segundo Canuto, "nasceu daí a falsa concepção de um Espiritismo sectário", incapaz de despertar o interesse de pessoas originárias de outras tradições espiritualistas. Nos escritos só agora revelados do grande pesquisador da primeira metade do Século XX, Canuto advertia: "É tempo de pôr as coisas em seus devidos lugares", e, para tanto, recordava Kardec: "O Espiritismo não é em si mesmo uma religião, nem pretende substituir-se a nenhuma seita religiosa, respeita a todas". Concluiu afirmando, na mesma linha tantas vezes adotada por Allan Kardec: "O Espiritismo, em suma, é o campo neutro de todas as religiões". Estudioso e pesquisador profundo das ciências religiosas, dono de uma cultura invejável, formado que era em Farmácia, Medicina e Direito, conhecedor do grego, do latim, do aramaico e do hebraico, Canuto de Abreu, segundo descreve o novo livro de Paulo Henrique, tinha plena autoridade para identificar no Espiritismo essa condição de situar-se como "campo neutro" de todas as religiões, sem se tornar uma delas.
"É a universalidade do ensino, aliás sancionado pela lógica, que fez e que completará a Doutrina Espírita." Allan Kardec (Revista Espírita de agosto/1867)