O dia em que Chico Xavier quase tomou posse na Academia Brasileira de Letras
Naquela agradável manhã de terça-feira, mesmo distante de sua querida Uberaba, cidade que escolhera para viver desde 1959, Francisco de Paula Cândido Xavier manteve parte de sua rotina diária: acordou bem cedo e, antes de tomar o seu café matinal, leu um pequeno trecho de O Evangelho segundo o Espiritismo e fez uma prece na qual rogou a Deus fosse digno de tão honrosa homenagem.
É que havia seis meses, de uma forma absolutamente inesperada para o médium mineiro, fora indicado por alguns escritores, sendo eleito ao final para ocupar uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras (ABL) – houve quem dissesse que o médium recebera cartas psicografadas de um falecido, parente de um daqueles imortais.
Na tarde daquele dia, em meio a uma ansiedade que lhe invadia o espírito, vestiu, em vez de um terno simples, um fardão de cor verde-escura com folhas bordadas a ouro, especialmente confeccionado para ele. No lugar de sua boina, colocou um chapéu de veludo preto com plumas brancas. Emmanuel, seu guia espiritual, manifestou-se à sua visão e conversaram sobre o seu discurso de posse. Naquela noite, não houve sessão na Casa da Prece.
Esta narrativa, evidentemente, não passa de uma ficção.
Com mais de 400 livros publicados, Francisco Cândido Xavier jamais atribuiu a si a autoria dos textos ali contidos, mas aos Espíritos, ou como queiram, às almas dos mortos, tanto de ilustres personalidades quanto de pessoas desconhecidas, textos esses recebidos através da faculdade mediúnica conhecida como psicografia. Em Parnaso de além-túmulo, obra que veio a lume quando o médium tinha apenas 22 anos, aparecem, como autores espirituais, consagrados poetas brasileiros e portugueses.
Sobre a semelhança no estilo literário de tais escritores, quando vivos e como Espíritos, não pairam dúvidas. Até mesmo o então cético Humberto de Campos, membro de Academia, admitira, em 1932, numa entrevista ao Diário Carioca:
“Eu faltaria, entretanto, ao dever que me é imposto pela consciência se não confessasse que, fazendo versos pela pena do Sr. Francisco Cândido Xavier, os poetas de que ele é intérprete apresentam as mesmas características de inspiração e de expressão que os identificam neste planeta. Os temas abordados são os que os preocuparam em vida. O gosto é o mesmo e o verbo obedece, ordinariamente, a mesma pauta musical. Frouxo e ingênuo em Casimiro, largo e sonoro em Castro Alves, sarcástico e variado em Junqueiro, filosófico e profundo em Augusto dos Anjos, sente-se ao ler, cada um dos autores que veio do outro mundo para cantar neste instante a inclinação do Sr. Francisco Cândido Xavier para escrever ‘à la manière de…’ ou para traduzir o que aqueles altos espíritos sopraram ao seu.”
O mesmo Humberto de Campos que, após a sua desencarnação, passou a ditar mensagens mediúnicas a Chico Xavier.
No entanto, há os que negam a psicografia, tanto como fenômeno mediúnico quanto paranormal. Acreditam que Chico Xavier teria sido, na verdade, um prodigioso imitador da forma de escrita desses ilustres poetas, praticando o que se pode chamar de pastiche, quando, por exemplo, em uma obra literária, se imita o estilo de outro escritor. Mas, fazer pastiche é algo bem mais complexo do que possa parecer. Segundo outro imortal, R. Magalhães Jr., numa entrevista concedida, em 1944, ao jornal A Noite, do Rio de Janeiro:
"Quem leia durante 60 dias, noite e dia, dia e noite, apenas Euclides da Cunha, escreverá no estilo de Euclides sem notável esforço, sem fazer uma ginástica mental muito dura. A mesma coisa acontece com quem leia Machado de Assis, com quem leia Castro Alves. Quanto mais pessoal for o escritor, tanto mais facilmente ele poderá ser imitado. Mas a imitação exige, sem dúvida, qualidades de inteligência, um bom fundo de cultura, lógica na escolha dos assuntos e na exposição das ideias […].
E, por essas mesmas razões, declaro que, se Chico Xavier é um embusteiro, é um embusteiro de talento. Para um homem que fez apenas o curso primário, sua riqueza vocabular é surpreendente […]"
Por sua vez, no mesmo ano, o escritor Mário Donato, em um artigo de O Estado de São Paulo, assim se expressou:
“Opto pela explicação sobrenatural, que não satisfaz a minha consciência, é verdade, mas apazigua a minha humaníssima vaidade de literato. Pode lá um homem avultar tantos palmos, por suas próprias forças, sobre a cabeça dos demais? Pode lá plagiar, velozmente como o faz Chico, Humberto, Antero e outros do mesmo naipe, a quem não se pasticha, senão depois de larga experiência literária e trabalhosa noite de insônia? Não, absolutamente. […]”
Ora, mas supondo-se que Chico Xavier fosse dotado de tão prodigioso talento para a escrita e que fosse o autor intelectual das obras, por que teria optado por dizer que os textos eram dos Espíritos e não seus? Por que não se assumir como escritor, se isso poderia lhe render, além de notório reconhecimento, recursos financeiros suficientes para lhe proporcionar uma vida materialmente confortável? Por que criar uma farsa, se as vantagens seriam menores do que dizer a “verdade”? No entanto, que fez o Chico? Consciente de que era apenas um intermediário das mensagens, decidiu-se por ceder os direitos autorais dos títulos psicografados a instituições beneficentes, mantendo-se apenas com a sua pequena aposentadoria. Até os valiosos presentes que costumava ganhar das pessoas que o visitavam, ele doava ou revertia em recursos materiais para os mais necessitados. Sem buscar aplausos ou fama, realizava seus trabalhos em pequenos centros espíritas. E, ainda por cima, recolhia-se para receber mediunicamente os livros. Foram dias, noites e madrugadas adentro, psicografando, lendo, datilografando, relendo… Disciplinado, dedicou ao labor mediúnico boa parte de sua vida, em detrimento dos próprios interesses pessoais.
Monteiro Lobato foi muito feliz quando disse:
"Sua missão não foi a de um literato, mas a de um mensageiro do Cristo.
[…] Se Chico Xavier produziu tudo aquilo por conta própria, então ele pode ocupar quantas cadeiras quiser na Academia.”
E Mário Donato, ao final do artigo anteriormente citado, reforça mais ainda essa ideia:
“Pois se não admitirmos que o caso é milagroso, temos que levar Chico Xavier à Academia Brasileira de Letras […].”
Ou se aceita Humberto subsistindo no outro mundo ou se aceita Chico Xavier valendo por Humberto e mais meia dúzia de cérebros arquiprivilegiados.
Porém, Chico nunca foi um membro da Academia, porque, efetivamente, sua missão não foi a de um literato, mas a de um mensageiro do Cristo, que soube levar, com maestria, a consolação e o esclarecimento aos corações e às mentes de muitas criaturas. Debruçados sobre seus livros, muitas pessoas obtiveram e continuam a obter respostas às mais profundas indagações. Segurando cartas psicografadas, muitos outros derramaram lágrimas de felicidade quando, ao receberem notícias de entes queridos que haviam falecido, tiveram a consoladora certeza: não estavam mortos!
Para a nossa alegria, foi dessa forma que o Chico se tornou um imortal.