zhou lanhua, zola.
Tudo começou com dois adolescentes, uma música antiga e uma caminhonete antiga o suficiente para ter o seu parachoque enferrujado pendurado sob superfície vermelha do veículo. Yifei não queria amadurecer naquele fim de mundo e fazer da sua juventude ser sobre o que seus pais queriam para si — e, honestamente, Kun seguiria aquela mulher com alguns parafusos a menos na cabeça para qualquer quinto dos infernos. Não tinham dinheiro, um plano estável e sequer a certeza de que o plano daria certo, mas de alguma forma, acabaram firmando suas raízes em Shenzhen. Dez anos depois, a mulher deu a luz a primeira e única filha do casal, Lanhua.
Por muito tempo foram apenas os três e um gato barrigudo resgatado das ruas da cidade. O dinheiro era curto e Kun se virava como podia, enquanto Yifei cuidava do comércio da família. Era quase uma faz-tudo: ao mesmo tempo em que a maternidade era complicada, costurava roupas para vizinhas, consertava sapatos furados de homens pobres o suficiente para não conseguirem substituí-los com rapidez e fabricava pequenos brinquedos e outras peças de artesanato. A riqueza era um estado de ser um tanto quanto longíquo para a garotinha, mas de certa forma, tem memórias boas da sua infância ao lado dos pais.
Em síntese, aprendeu tudo o que sabe na vida com eles. Como se virar mesmo quando as esperanças eram praticamente nulas, a se defender de outras crianças - e adultos - e a criar coisas com as duas mãos. Conseguiu finalizar a sua primeira boneca de madeira aos seus sete anos, e daí, não conseguiu parar mais. Frequentava a escola, tinha contato com algumas crianças e foi capaz de construir amizades aos trancos e barrancos, embora a sua especialidade fosse mesmo ficar trancada na sala do velho clube de música até o anoitecer. Os dedinhos tinham uma fissura grande pelo violão gasto que nenhuma criança parecia se importar o suficiente, mas nele, via a coisa mais preciosa do mundo. Desde pequena já gostava de tudo aquilo que fosse estranho e não muito usual.
As memórias da adolescência são mais turvas, embora se lembre com facilidade dos nomes e rostos daqueles responsáveis por estar na sua situação atual. Se lembra em partes do incêndio da residência que também era a oficina de trabalho da mãe, de presenciar seu pai chorando escondido mais vezes do que gostaria, de fingir acreditar que estava tudo bem enquanto, na realidade, sabia que não estava. O luto é algo que não soube bem comportar dentro de si e a ausência da mãe fez um buraco em Lanhua que ninguém e nem nada - nem mesmo as suas bonecas - foram capazes de preencher. Nos anos finais da escola, não era mais uma garota tão sorridente, já que passava mais tempo tentando ajudar na renda em casa do que ter boas notas ou pensar no futuro.
O pai era o seu alicerce e quando este simplesmente desapareceu no seu aniversário de vinte anos, deixando somente uma coleção de cartas, algo indigesto em si só foi crescendo. Ele não queria ser encontrado, queria se desculpar pelo que Lanhua não se lembra, mas algo numa ilha distante parecia chamá-lo. O que soube de Nebula foi bem pouco; turistas pareciam gostar do lugar, da praia, das pessoas que ali habitavam e da sua cultura, mas nada além do que sabia sobre qualquer país que nunca havia posto os pés. A princípio, não iria atrás do homem, conformada com a ideia de que seria abandonada cedo ou tarde por qualquer pessoa que cruzasse o seu caminho. Até mesmo os brinquedos que fazia a deixavam, cedo ou tarde, em troca de dinheiro.
Entretanto, foi no aniversário de vinte e dois anos que decidiu passar uma temporada em Nebula. Foi um ato totalmente impensado, num ímpeto comprou as passagens e partiu de barco para a ilha coberta de névoa. Enquanto pondera se deveria mesmo buscar pelas respostas acerca do pai, tenta se ajustar como uma nova nebulense. Com o baixo gasto e as suas ferramentas, pensa que talvez, mas só talvez, possa permanecer mais um pouquinho ali e se dar bem no novo ambiente.