René Descartes e o Mistério da Relação Mente-Corpo
Em sua obra, "Discurso sobre o Método", René Descartes não só inaugura o método cartesiano enquanto Filosofia da Ciência a partir do "cogito" sendo considerado o "pai da ciência moderna" e de seus solipsismos, como também "inaugura" uma distinção que, se não é tão inovadora (por já existir desde o hinduísmo, em que o universo em todas as suas faces - incluindo os deuses, é, na verdade, a emanação da MENTE de um Deus uno), certamente será posta de forma bastante difícil de desvencilhar do pensamento epistemológico moderno e pós-moderno: a distinção, exposta na quarta parte de seu "Discurso sobre o Método", entre res cogitans e res extensa:
a) Res cogitans (a mente): substância pensante, imperfeita, finita e dependente.
b) Res extensa (a matéria): substância que não pensa, extensa, imperfeita, finita e dependente.
Da distinção de Descartes se segue que a matéria não é a mente e a mente não é a matéria, embora ambas estejam unidas de modo misterioso. Por exemplo: se aceitarmos a ideia de que a mente não é nem propriedade, nem produto nem emanação do corpo, todos os objetos físicos só se movem por terem sido primeiramente "animados" (de "anima") pela mente; isto vale, inclusive pra toda vez que você pensa e, decorrente disto, move um grupo ósseo-muscular qualquer do corpo.
Passados 4 séculos após a obra de Descartes ter saltado da mente do filósofo para as páginas escritas e impressas, surge um outro livro de nome bastante revelador, desta vez pela mente (ou seria pela mão?) do médico neurologista português António Damásio, chamado "O Erro de Descartes". Desta vez, ao contrário do que o nome da obra pode sugerir, não se trata de um livro de Filosofia ou de Metodologia da Ciência (como também é classificado o Discurso sobre o Método), mas como um compêndio de Descobertas científicas de como áreas do cérebro danificadas destruíam propriedades anteriormente presentes na mente e comportamento de pacientes com lesões por acidentes ou quadro neurodegenerativos levando à interpretação de que "Descartes errou" e que a mente seria um subproduto gerado a partir da matéria. Mas, claro, esta relação não seria explicada de forma tão simples nem pelo mais ferrenho cientificista após quase 30 anos do lançamento da obra de Damásio. Joel e Ian Gold (o primeiro, psiquiatra; e o segundo, neurocientista), diante do aumento incontestável dos DIAGNÓSTICOS de doenças mentais as mais variadas (desde coisas comuns como depressão e ansiedade até diagnósticos que no passado correspondiam a outra sintomatologia bem distinta, como é o caso do autismo, que saltou praticamente 30 vezes o número de diagnósticos em aproximadamente um século) responderam à pergunta "Que ideia científica está pronta para a aposentadoria?" com: "A doença mental nada mais é do que uma doença cerebral". E embora não venha tanto ao caso, é difícil dizer se a dupla de homens da ciência estaria se referindo à percepção empírica da multifatorialidade de um mal estar na civilização num tempo de relacionamentos líquidos e cientificismo que relegou à ciência materialista o papel sacerdotal de cuidar da (alma?) humana condição ou se teriam noções filosóficas suficientes para notar um erro de lógica gravíssimo na base de TODO pensamento cientificista, a saber, a "falácia do nada mais/mais do que", cujo erro consiste no seguinte raciocínio: "afirmações do tipo 'nada mais' implicam o conhecimento de 'mais do que'" (um bom exemplo pode ser retirado do livro "Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Um Ateu" onde um exemplo é dado contra o próprio ceticismo filosófico do filósofo alemão Immanuel Kant: "Kant disse saber que as informações que chagam ao seu cérebro nada mais são do que fenômenos. Mas, com o objetivo de saber isso, precisaria ser capaz de ver mais do que simplesmente o fenômeno"; sendo portanto a falácia "nada mais/mais do que" um tipo de raciocínio circular, falso e mal embasado tanto quanto Neil Armstrong dizer que "eu sei que não é possível ao homem ir à lua, eu já estive lá!"... isto, se admitirmos que ele realmente esteve lá, obviamente).
Mas, se Descartes é considerado o "pai da ciência moderna", como pode a ciência moderna dizer que Descartes errou ao mesmo tempo em que se admite que "doenças mentais nada mais são do que doenças cerebrais"? As duas afirmações não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo num mesmo sentido, ou a mente é material e resultado da "atividade do cérebro", ou a mente não é física como parecem evidenciar o aumento de diagnósticos e, consequentemente, de medicalização dos afetos presentes nas chamadas "doenças mentais" não-morfológicas, as que são chamadas de "doenças mentais" que nenhum exame realmente atesta como "transtorno de ansiedade generalizada", "depressão", "ideação suicida", transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e até alguns graus mais leves do chamado "espectro autista" que, aliás, recentemente passou a englobar uma miríade de diagnósticos distintos em um só conceito (há de se convir que o humor depressivo não pode ser confundido com condições físicas que o imitem, como o hipotireoidismo; problemas cognitivos decorrentes de má educação ou vício da preguiça não podem ser confundidos com incapacidade cognitiva decorrente de coágulo, acidente vascular encefálico/cerebral, câncer no cérebro ou lesão traumática; mesmo surtos psicóticos ocasionados por stress, ansiedade, trauma psicológico não podem ser comparados, por exemplo, a doenças neurodegenerativas como o "mal de alzheimer", os problemas de socialização comuns não podem ser confundidos com uma lesão por lesão grave no córtex pré-frontal, enfim... o que todos os exemplos que cito tem em comum são: mesmos sintomas gerais, embora os primeiros casos não tenham origem física e os segundos tenham alteração morfológica notável).
Descartes costuma ser acusado de ter criado um sistema que divide desnecessariamente mente e corpo como um binômio, uma dualidade, comumente chamada por seus interpretadores de "fantasma na máquina", já que a "máquina" ou "hardware" correspondente ao corpo seria regida por um suposto "homúnculo"/fantasma da alma (ou espírito, como queiram) correspondente à mente de um modo que nem mesmo Descartes foi capaz de explicar. Mas quanto do mundo nunca fomos capazes de fato de explicar e no entanto, assim é? Quaisquer investigação que se preze deveria entender que, diante das evidências em favor, descartado o completamente impossível, mesmo o mais improvável deve (ou, ao menos, PODE) ser verdade. Ademais, temos uma forma um tanto quanto "estranha" de entender as ciências da mente. No passado, Sócrates, São Tomás de São Tomás de Aquino e Kierkegaard já tratavam de temas Psicológicos como viés, vontade e angústia, apenas para citar alguns, com muito mais profundidade (e sem premissas mecanicistas) do que se faz com a nova "ciência" da Psicologia inaugurada em 1879.
Para, de fato, entender de onde veio tamanho problema, se faz necessário conceitualizar corretamente o que se está investigando. A saber, a ciência não se baseia em si mesma, mas em um modelo metafísico cuja realidade é pressuposta "a priori" como verdade incontestável; porém, a menos que seja auto-evidente, por útil que seja, não pode ser considerado definitivo ou "intocável". De fato, a impermanência é característica marcante da ciência moderna (a ponto de gerar certo desconforto, quando não "desconfiança" quanto a seu paradigma de interpretação da realidade ter se tornado preponderante no mundo atual). Trazendo para nossa conceituação um acadêmico da Semiótica, o doutor em Literatura Alexandre Linck, por exemplo, vai dizer que: "Se engana quem acha que a ciência é sempre a construção, a elaboração de dados objetivos (...). Galera precisa voltar a ler Thomas Kuhn, voltar a ler sobre o conceito de 'paradigma' na ciência. (...): O 'paradigma' é, antes de tudo, um produtor de modelos. Veja, um 'paradigma' não é um modelo, o paradigma PRODUZ o modelo. Daí que, o paradigma, ele é sempre muito inacessível, ele muda a solavancos, ele opera a revoluções, e podem ser revoluções silenciosas, cabe dizer... Mas são revoluções. A gente faz ciência dentro de certos paradigmas, (...) dentro de certas limitações de ordem filosófica. Não por acaso, coisas que eram consideradas 'ciência' deixaram de ser, outras que não eram passaram a ser... Isso é a história da ciência". A questão do paradigma construtor de modelos talvez seja mais visível na Física Quântica, uma vez que modelos matemáticos discordantes e até contraditórios (o exemplo mais famoso é o do problema da "Interpretação de Copenhague" x o "Princípio da Incerteza" de Heisenberg para quem quiser pesquisar a respeito) são usados de forma eficaz inclusive na produção de sistemas eletrônicos simplesmente para dar as respostas de controle necessárias a produzir o resultado desejado, a física de Einstein nega a visão de cosmos de Newton, mas Newton continua sendo usado para calcular trajetórias e movimentos inclusive em perícia de acidentes de trânsito e balística, enquanto que Einstein nos deu a base matemática pra fazer o sistema de GPS funcionar.
Hoje, campo das chamadas "ciências da mente", há uma influência direta (e contraditória), de um lado, do positivismo cientificista em entender a mente como algo dentro da esfera de estudo da matéria num cosmos de sistema fechado que oscila entre o deísmo e o naturalismo e, do outro, do materialismo "histórico" presente tanto no marxismo original quanto em suas variantes no sentido de pautar politicamente a pauta da saúde mental. Se por um lado, a primeira visão se faz determinista e medicamentosa patologizando afetos e comportamentos, por outro, se entende que o nominalismo impera no que tange aos assuntos mentais, de modo que, desde Foucault, tudo que é não-virtuoso e que o homem positivista tinha por "anormal" (como se vício ou virtude fossem temas de escrutínio estatístico) foi politicamente deslocado para a pauta da revolução em nome da construção de um novo homem (ideal também presente em Nietzsche) sob a forma do "não venha me rotular, eu construo meu destino, posso ser o que eu quiser e o governo deve oprimir a todos igualmente de modo a me conceder meu direito especial de negar a natureza da realidade objetiva" (coisa que, apesar dos pesares, o positivismo não faz), especialmente desconstruindo o conceito de "natureza humana". Inclusive, parte do problema é historicamente apontado como decorrente do "divórcio teórico" entre a psicanálise e a psiquiatria na década de 1980 (Dunker, 2014). Ao se negar a explicar qual a natureza da mente ou, ao menos, afirmar, tal qual Sócrates, a própria ignorância do assunto, preferimos, uma vez mais, após abandonar os confessionários imitados por Freud em seu setting terapêutico, abandonamos agora também a psicanálise para buscar as métricas das "técnicas estatisticamente comprovadas" de como "mudar e ser feliz" conforme a moda de cada ano ou as mais modernas "pílulas mágicas" da indústria farmacêutica, com a bênção dos sacerdotes de jaleco, para fazer virtude brotar dos humores de hipócrates. Apartar o conceito de "mente" do(s) conceito(s) de alma me parece levar inevitavelmente para a medicalização e auto-afirmação como um binômio dialético que é insuficiente, em ambos os pólos, de entender o que somos e do que precisamos: virtude, solitude e silêncio.
A confusão ainda deve imperar, dopar e matar alguns milhares de pessoas enquanto a Psicologia, a Psiquiatra e a Neurociência (para citar as atuais principais "ciências da mente") se negarem (assim como a ciência cientificista) a responder adequadamente à pergunta mais básica sobre seu objeto de estudo: O que é a mente? ...Eu sugeriria começar por Bodhidharma para nossos teóricos começarem a entender, ao menos, o que a mente não é.
EPÍLOGO:
"DESCARTES: Alguém resolveu o problema de como a mente relaciona-se com o corpo? Tenho consciência de que não deixei resposta satisfatória a essa questão.
Pensei que talvez a resposta pudesse vir dos fisiologistas, que, no meu tempo, haviam descoberto, na base do cérebro, a primeira glândula sem duto, a glândula pineal. Pensei que, por flutuar livremente e não estar ligada ao restante do corpo como os outros órgãos, essa glândula poderia ser a sede da alma; mas já penso que isso foi um erro bobo, pois uma glândula, tenha ela dutos ou não, é algo puramente material, de forma alguma uma ponte entre mente e matéria. Ausência de dutos não é o mesmo que imaterialidade.
Encontrou alguém, portanto, uma resposta melhor do que a minha para a misteriosa questão de como estes dois entes, absolutamente diferentes um do outro, o corpo e a mente, conseguem relacionar-se de modo tão perfeito que parecem ser um só?
SÓCRATES: Não. Mas houve quem achasse resposta melhor que a tua para outra pergunta: a questão acerca do porquê de ninguém ter encontrado uma resposta adequada a esta questão. Isso te interessaria?
SÓCRATES: Seu nome é Gabriel Marcel, e viveu trezentos anos depois de ti. Era um católico francês, como tu. Ele dividiu todas as questões filosóficas em duas categorias: a primeira, que ele chamou “problemas”, e a segunda, que ele chamou “mistérios”. Com “mistérios” ele quis dizer questões que não só ainda não haviam sido esclarecidas ou respondidas, mas que em princípio jamais poderiam ser totalmente esclarecidas ou satisfatoriamente respondidas, como qualquer dos “problemas” poderia, e por causa disto: porque no “mistério” o interrogador “participa” da pergunta. Ele está envolvido, e não distanciado. Em outras palavras, a verdadeira pergunta é o próprio interrogador, de modo que ele não pode torná-la objeto, mas precisa vivê-la no ato mesmo de perguntá-la"(Sócrates encontra Descartes, p. 119-120)."¹
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