Heráclito Em Nova Perspectiva: Uma Transposição Cristã do Princípio Dialético da Mudança
30 Seconds To Mars em "Oblivion"
Já faz algum tempo desde que compartilhei uma reflexão em que expresso uma crença baseada numa percepção de que "o inverso nasce de seu oposto" que apresentei metafisicamente como o "O Uno (que) gera o Múltiplo", sem necessidade (em sentido aristotélico) de "revoluções" mas simplesmente por saturação e inversão, num determinismo (aberto, mas) causal.
Heráclito tem similitudes com outro pensamento que tangencia a mesma visão metafísica: o budismo (como um todo), especialmente o Zen. Recuperei 3 citações marcantes (para mim): uma da coleção "Os Pensadores", uma de James Sire em sua obra "O Universo Ao Lado: Um Catálogo Básico sobre Cosmovisão" e outra da canção "Como uma Onda", de Tim Maia. O que as 3 têm em comum? A descrição do monismo budista que é essencialmente A MESMA presente tanto no pensamento de Heráclito, na famosa coletânea brasileira de Filosofia chamada "Os Pensadores" e, por fim, na (que talvez seja a mais) famosa canção de Tim Maia... Comparem:
HERÁCLITO
Heráclito (c. 510-480 a.C.) transforma em solução o que aos outros era problema. Para ele, o mundo explica-se não apesar das mudanças de seus aspectos, muitas vezes contraditórios, mas exatamente por causa dessas mudanças e contradições. Por isso, em um de seus fragmentos, diz: "O combate é de todas as coisas o pai, de todas o rei". Em outras palavras, todas as coisas opõem-se umas às outras, e dessa tensão resulta a unidade do mundo.
Essa oposição, esse combate, é uma guerra, e não, como pretendia Anaximandro, o equilíbrio de forças iguais. Tampouco é a harmonia dos contrários assegurada, como no entender dos pitagóricos, pela justa medida imposta por um ente supremo. Para Heráclito, a harmonia nasce da própria oposição: "o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira".
A divergência e a contradição não só produzem a unidade do mundo mas também a sua transformação. O mundo é um eterno fluir, como um rio; e é impossível banhar-se duas vezes na mesma água. Fluxo contínuo de mudanças, o mundo é como um fogo eterno sempre vivo, e "nenhum deus, nenhum homem o fez".
Mas só se compreende isso quando, ao deixar de lado a "falsa sabedoria" ditada pelos sentidos e pelas opiniões, chega-se ao logos, isto é, ao pensamento sensato. E o raciocínio adequado que abre as portas para o entendimento do princípio de todas as coisas. "Não de mim mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um", diz um de seus aforismos.
ABRÃO, Bernardetta Siqueira (organizadora); COSCODA, Mirtes Ugeda (revisora). História da Filosofia, Coleção "OS PENSADORES". São Paulo, 1999 . Editora Nova Cultural.
BUDISMO
"Sidarta se inclina e escuta o rio com atenção: Sidarta esforçou-se por aguçar os ouvidos. A imagem do pai, a sua própria imagem e a do filho, todas elas se confundiam. Também surgiam e diluíam-se em seguida as visões de Kamala, de Govinda, e muitas outras. Entremesclavam-se, tornavam-se rio e como tal fluíam em direção à meta, ávida, ansiosa, tristemente. E a voz do rio ressoava, cheia de saudade, cheia de doloroso pesar, cheia de insaciável desejo. O rio rumava em direção à sua foz. Sidarta percebia a pressa daquela corrente formada por ele mesmo, pelos seus, por todos os homens que já se lhe haviam deparado. Todas essas ondas e águas, carregadas de sofrimentos, precipitavam-se em busca de suas metas, que eram muitas, as cataratas, o lago, o estreito, o mar e, uma a uma, as metas eram alcançadas, mas a cada qual seguia outra; da água formava-se bruma, que subia ao céu, transformava-se em chuva, a cair das alturas, virava fonte, virava regato, virava rio e novamente iniciava a sua jornada, novamente fluía rumo à meta. Mas a voz sôfrega acabava de mudar. Ainda ressoava, plangente, inquiridora, porém se misturava com outras vozes, alegres e aflitas, boas e más, risonhas e entristecidas, centenas de vozes, milhares de vezes.
Por fim, todas as vozes, imagens e rostos se entrelaçaram: "E todo aquele conjunto, a soma das vozes, a totalidade das metas, das ânsias, dos sofrimentos, das delícias, todo o Bem e todo o Mal, esse conjunto era o mundo [...] a grandiosa cantiga dos milhares de vozes se resumia em uma só palavra, que era Om, a perfeição." Nesse ponto Sidarta alcança a unidade interior com o Uno, e "a serenidade do saber" brilha em seu rosto.
HESSE, Hermann. Siddhartha, trad. Hilda Rosner. New York: New Directions, 1951 . p. 122 .
Nessa longa passagem, e ao longo do livro, o rio se torna uma imagem do cosmo. Quando observado de um lugar ao longo da margem, o rio flui (o tempo existe). Mas quando observado no seu todo - da nascente ao córrego, ao rio, ao oceano, ao vapor, à chuva, ao córrego -, o rio não flui (o tempo não existe). É uma ilusão produzida por quem está sentado na margem em vez de ver o rio a partir dos céus. O tempo também é cíclico; a história é produzida pelo fluir das águas a passar por um ponto na margem do rio. Ele é ilusório.
SIRE, James W. O Universo ao Lado: Um catálogo básico sobre cosmovisão [recurso digital]. Editora Monergismo, 2018.
"Como Uma Onda no Mar"
Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas como o mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo, no mundo
Não adianta fugir
Nem mentir pra si mesmo
Agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro, sempre
Como uma onda no mar.
Obviamente, nenhum cristão vai concordar que o mundo não foi por Deus criado, mas negar que "tudo é movimento" pode ser mais difícil.
Vou partir do ponto de que a Lógica não é simplemente o "estudo dos entes de razão de segunda intenção", porém, mais propriamente, uma "proto-linguagem" no sentido de que "corrije e prescreve como expressar o que pode ser comunicável a partir de estruturas formais (verbais ou não verbais)". A razão aqui pode até ser considerada um "afeto" (enquanto "apego") já que definições são muitas vezes arbitrárias e sujeitas a alguma "afetação", além disso, aceito que "não existem sinônimos perfeitos" - só parece ser possível preencher validamente as formas sobre as quais a Lógica se debruça a partir da experiência com o mundo externo... e só estou trazendo isso à tona para poder melhor afirmar que "contradições se limitam à esfera da linguagem". Se aceitarmos esse ponto, veremos que Heráclito talvez não estivesse realmente propondo algo muito diferente dos Pitagóricos, mas usando "contraditório e contrário" como sinônimos (coisa que, de fato, a maioria de nós faz no dia-a-dia organicamente) além de perceber (mais acertadamente?) que bem e mal são uma unidade relacional sinérgica interdependente mas não estão em harmonia, mas em conflito.
De fato, se observarmos outra canção, desta vez extraída de um desenho animado infantil usado para explicar "onde o sol se esconde", vamos parar na mesma demontração que pretendo fazer aqui. Com vocês, "O Show da Luna":
Vocês conseguem perceber que direções são relacionais e que, ao que parece, o pensamento humano não consegue ir além de "parado e em movimento" como "categorias metafísicas"? Ambos os primeiros princípios mais filosoficamente "atacados" na modernidade dependem dessas categorias: o princípio da causalidade (se->então, no TEMPO) e o princípio da não-contradição (já escrevi um artigo bem longo aqui sobre este segundo só fazer sentido no "mundo sublunar").
Uma categoria de pensamento filosoficamente cristão a respeito de Deus é que "Deus é substância simples"... Mas ninguém nunca viu NADA simples! Tudo que captamos com os sentidos é feito de matéria e forma. Não havendo nada simples a ser notado pelos sentidos, também não temos nada realmente "parado": a Terra parece parada e gira. O sol parece parado, mas a via láctea, onde ele se encontra, está em movimento (dizem...), portanto... O que de fato está parado?!
Budismo e Cristianismo têm algumas semelhanças interessantes: ambos tem alguma tradição antropológica em que o ser humano é metafisicamente vazio. Ambos falam de esvaziamento: o primeiro da mente pela yoga; o segundo, de Deus ao criar e encarnar. Ambos admitem (em graus diferentes) a necessidade de se abdicar dos desejos, etc. Nas diferenças, a mais gritante é a ausência da crença na transmigração da alma (que nem é uma condição sine qua non de todas as vertentes budistas), mas não é disso que quero falar, porque a transmigração no budismo é uma consequência lógica de uma metafísica em looping onde tudo que foi deve voltar a ser: incriado, impessoal, sem começo nem fim. Tirando a parte do impessoal, poderíamos dízer que estão dando ao "tudo é um" os mesmo atributos que cristãos dão a Deus.
Meu ponto é: a diferença metafísica entre Cristianismo e Budismo está em "onde a digressão causal deve parar": num looping (no caso do monismo budista) ou na revelação (no Cristianismo).
A ideia de unir essas passagens numa transposição cristã das ideias de Heráclito me ocorreu após ouvir uma música criada por IA! ...É, eu sei que buscar "sentido" numa letra criada por IA é um contrasenso já que "sintaxe não produz semântica", mas aqui estou levando em conta que IA = IN e creio que podemos fazer algumas transposições inspiradas na canção "Transitório" (já destacada na Ágora em outro momento) por sintetizar o pensamento de Heráclito com alguns acréscimos sutis. Salvo engano, me parece mais uma letra criada majoritariamente por IN com "retoques" (pra não dizer "hallucinations") de IA (irei sinalizá-los à medida que proponho uma nova interpretação de Heráclito transpondo os princípios do filósofo para um âmbito mais geral - inclusive, tangenciando conceitos budistas e cristãos que me parecem interseccionados em ambas as religiões). E não é em vão que estou relacionando Lógica com Linguagem...
Se, para Heráclito, a condição para que o Logos se revele é que "só se compreende isso quando, ao deixar de lado a 'falsa sabedoria' ditada pelos sentidos e pelas opiniões, chega-se ao logos, isto é, ao pensamento sensato" o erro de Heráclito não foi constatar em tudo que percebeu o "movimento" mas em assumir que a sabedoria por ele afirmada vinha do Logos quando, na verdade, ela é inteiramente dependente dos sentidos! Tentaremos reler conceitos heraclitianos na canção "Transitório" aqui a partir desse prima (tenham em mente que isto tudo aqui é uma transposição proposital de conceitos, ok?). Vamos à análise e... Me desejem sorte!
No sopro leve do vento
Tudo vai passar
As flores dançam no tempo
Sabem desapegar
A lua cheia já se esconde
Cede à madrugada
Cada instante é um tesouro
Mesmo na jornada
Tudo muda
Tudo é movimento
O agora é ouro
Um breve momento
Entre o vazio e a eternidade
Canto a vida, celebro a transitoriedade
No rio fluem histórias, não há como segurar
As águas vão e voltam, sempre a se transformar
Caminhos vêm e vão, cada passo é aprender
Perder também é ganhar
Renascer é viver
Tudo muda
Tudo é movimento
O agora é ouro
Um breve momento
Entre o vazio e a eternidade
Canto a vida, celebro a transitoriedade
Deixa o sol se pôr,
Ele volta amanhã
Deixa o coração soltar
O que não é (vão!)
O sofrer é só nuvem que passa pelo céu
Descobre a luz além do véu
Tudo muda, tudo é tão presente
O futuro é sonho, o passado... ausente
Na impermanência há liberdade
Canto a vida, celebro a transitoriedade
Celebro (celebro) o agora
Cada passo, cada história
Tudo dança, tudo voa
A vida é jazz e a gente...
Ecoa
Tanto Cristianismo como Budismo nos convidam a alguma forma de "desapego", seja para evitar o sofrimento não desejando seja prescrevendo "nunca permita que sua felicidade dependa de algo que você possa perder". Ambos convidam a aproveitar o caminho, contemplar a beleza das flores e celebrar o agora (carpe diem, lembram?), ambos fazem referência a um véu que nos separou da realidade última (seja o véu de Maya ou o véu do templo, rasgado na morte de Cristo Jesus). Ambos tratam o sofrimento como transitório para o fiel. Para ambos, o tempo está entre o vazio e a eternidade. Parecem-se, inclusive, no ponto em que até para Deus foi justamente a impermanência posta na criação que gerou (para bem e para mal) a liberdade. Ambos alegam (por razões diferentes) que "perder é ganhar" e "renascer é viver".
A grande novidade do Cristianismo é a Graça de uma recompensa imerecida que quebra o ciclo do sofrimento (o samsara budista)porque Deus se esvaziou em nosso favor para que não precisássemos ser nada.
Mas, afinal, mesmo pra mim, que sou cristão, parece que Buda e Heráclito acertaram em perceber que a própria mudança é permanente.
Meu desejo sincero é que eles também tenham experimentado isso na prática porque "o novo que se renova" nos ensinou que o "necessário é nascer de novo" não era literal, mas faz parte da mudança que todo homem deve passar antes de encontrar em paz com seu Criador.
Obs.: Escrito ao som de "The End", de Audio Vex. Recomendo d+!