PSICOLOGIA E VOLUNTARISMO
Introdução
Trabalhando como psicólogo clínico desde 2012 e profundamente voltado à Filosofia como ferramenta intelectual também aplicada ao trabalho já propus aqui alguns ensaios anteriores sobre a relação entre temas da Psicologia e Filosofia que estão intimamente ligados abordando tópicos como Filosofia da Mente nos artigos A Mente (NÃO É) FÍSICA e René Descartes e O Mistério da Relação Mente-Corpo, a estreita relação entre o precário desenvolvimento do raciocínio lógico e diversos problemas de saúde mental em Primeiros Princípios da Lógica & Saúde Mental, a dificuldade de estabelecer na modernidade um conceito adequado e perfeito para o fenômeno da inteligência em Um Pequeno Compilado sobre Testes de Inteligência & Desenvolvimento de Inteligências Artificiais e até mesmo problemas contemporâneos como nossa má relação com a tecnologia em Culto À Tecnologia E O Esvaziamento do Ser, Filosofia da Linguagem aplicada aos relacionamentos amorosos em Amor, Sexo, Linguagem & A Origem dos Mal-Entendidos.
Este é mais um texto-ensaio de uma reflexão prática entre aspectos da Psicologia e Filosofia que se interseccionam. No texto de hoje, nos debruçaremos sobre o tema do "Voluntarismo" e sua relação com a Psicologia.
O Que é "Voluntarismo?"
Tentando partir de uma visão mais ampla e sabendo que muitos (assim como eu, outrora) fazem uso do termo "voluntarismo" eventualmente com um significado mais atrelado à sua bolha virtual por uma espécie de polarização filosófica, resolvi fazer uma rápida pesquisa no Copilot lançando mão de um questão de "campo semântico":
QUESTÃO: Em Filosofia existem diferentes versões de "voluntarismo" que seriam incompatíveis entre si presentes em diferentes sistemas filosóficos ou "voluntarismo" seria apenas a qualidade de pressupor a primazia da vontade sobre o intelecto em quaisquer sistemas filosóficos (mesmo entre os de cosmovisões incompatíveis entre si)?
Excelente pergunta — e ela toca num ponto sutil e fascinante da história da filosofia. O termo voluntarismo não é monolítico; ele designa uma família de doutrinas que compartilham a ideia central de que a vontade tem primazia sobre o intelecto, mas essa primazia é interpretada de formas divergentes e até incompatíveis em diferentes sistemas filosóficos.
* Visões distintas de voluntarismo
Aqui estão algumas versões principais:
1. Voluntarismo teológico (Escolástica medieval)
Autores: Duns Scotus, Guilherme de Ockham
Tese: A vontade de Deus é superior ao seu intelecto. Deus escolhe o que é bom, e não o reconhece como tal por meio da razão.
Implicação: A moralidade depende da vontade divina, não da razão universal.
Incompatibilidade: Contrasta com o intelectualismo de Tomás de Aquino, que afirma que Deus age conforme a razão.
2. Voluntarismo metafísico ( Schopenhauer)
Tese: A vontade é a essência do mundo, uma força irracional que precede e fundamenta o intelecto.
Implicação: O intelecto é um produto secundário da vontade.
Incompatibilidade: Diverge radicalmente do racionalismo cartesiano ou do idealismo alemão, que colocam a razão ou a consciência como fundamento.
3. Voluntarismo ético (Fichte, Nietzsche)
Tese: A ação moral e a construção do eu são guiadas pela vontade, não pela razão teórica.
Implicação: A liberdade e a autodeterminação são expressões da vontade.
Incompatibilidade: #Nietzsche, por exemplo, rejeita qualquer moral racionalista ou universalista.
4. Voluntarismo epistemológico
Tese: Podemos escolher acreditar em certas proposições por um ato de vontade, mesmo sem evidência racional suficiente.
Exemplo: William James defende que a fé pode ser uma escolha legítima em contextos onde a razão não oferece respostas conclusivas.
* ⚔️ Compatibilidade entre sistemas?
Embora todos esses sistemas compartilhem a primazia da vontade, eles são filosoficamente incompatíveis em muitos aspectos:
A natureza da vontade varia: divina, irracional, moral, existencial.
O papel do intelecto é tratado de forma distinta: subordinado, ilusório, complementar.
As implicações éticas, metafísicas e teológicas são profundamente diferentes.
Portanto, o voluntarismo não é uma doutrina única, mas sim um motivo filosófico recorrente que aparece em sistemas com cosmovisões incompatíveis entre si.
https://copilot.microsoft.com/shares/JfJPUrBkz42Bv4MGwKbJK
Agora que sabemos o que é "voluntarismo" em acepções um pouco mais amplas, podemos notar que o que todas têm em comum é uma noção de "primazia" oub "anterioridade" em relação à razão.
Voluntarismo e Terapia Cognitivo-Comportamental
https://www.perplexity.ai/search/quais-as-bases-filosoficas-da-Ml7ICr.FT2eK8kvfKGs_CA
Entre as vertentes da Psicologia que contam com maior rigor "científico", no sentido comum do termo, por dar conta de demonstrar resultados replicáveis e se submeter a validação estatística de seus pressupostos observáveis, a Terapia Cognitivo-Comportamental é uma abordagem Psicológica que parece beber de uma fonte antagônica ao Voluntarismo já que parte do núcleo epistemológico de que "a percepção leva ao pensamento, que leva à reação emocional"; logo, sua abordagem psicoterápica se propõe a elaborar racionalmente suas ações, condicionamentos, pensamentos (esquemas cognitivos, traumas, pensamentos intrusivos, etc.) e, por conseguinte, sua VONTADE.
Voluntarismo e Psicanálise
https://www.perplexity.ai/search/quais-as-bases-filosoficas-da-ugDrPIevRNyZJbx4WkU0NA
A Psicanálise pode ser considerada, até certo ponto, a vertente espelhada e oposta à abordagem Cognitivo-Comportamental já que, na Psicanálise, estabelece um primado do irracional ante o racional e da vontade ante o intelecto. A Psicanálise talvez seja a mais importante escola filosófica voluntarista dentro das abordagens psicológicas.
Não pretendo entrar no mérito se a abordagem é ou não científica porque, assim como na mitologia, o ferramental psicanalítico é simbólico, portanto qualitativo (ou mais "subjetivo" que "objetivo" se você acredita nessa dicotomia); inclusive, vemos quem se beneficie dessa abordagem e de fato melhore, embora seja difícil estimar quantitativamente eficácia geral daqui que, por método, tem baixa replicabilidade: a Psicanálise se detem em universos mentais individuais e particulares e o máximo de universalidade que temos na prática vem de variantes que trabalham, por exemplo, noções arquetípicas, como na Psicologia Analítica Jungiana. Assim sendo, nos deteremos apenas no aspecto do voluntarismo dentro da Psicanálise.
O voluntarismo psicanalítico aparece tanto na primeira quanto na segunda teorias psicodinâmicas de Freud tanto nos postulados das instâncias do "inconsciente" (que é um conceito auto-contraditório na forma como foi originalmente pensado e como é amplamente divulgado até os dias de hoje) e também do "ID" que é basicamente "puro desejo". Para mais além da contradição que é "afirmar conscientemente que há uma esfera da mente totalmente inconsciente que só é (convenientemente) acessível através da terapia psicanalítica", temos ainda, no mínimo, caso de contradição performática no pressuposto de que "ao entender as próprias motivações inconscientes (ou "subconscientes", se quisermos evitar a contradição lógica) o ser humano se torna capaz de gerenciar melhor a vontade e se libertar de seus traumas" - a contradição performática está em justamente pressupor que, com o ferramental psicoterapêutico adequado, seria possível ao ego "gerenciar" melhor a vontade (de modo mais racional, certo?).
Voluntarismo e Psicologia Positiva
https://www.perplexity.ai/search/quais-as-bases-filosoficas-da-xNZHs92LSVuLNB1yWFGnAw
Eu tenho uma impressão informal de que a Psicologia Positiva é um tipo de amálgama de #Budismo + #Estoicismo. A união do ideal de imperturbabilidade presente na ataraxia estóica somado à necessidade de olhar para a vida com "bons olhos" esvaziados do desejo, como no Budismo.
Se assumirmos que a mente interpreta a realidade a partir de sua vontade, o silenciamento da vontade seria o caminho mais óbvio para reinterpretar as emoções. Então, a liberdade real é de fazer algo independentemente das "paixões da vontade".
Temos "memes" budistas na internet com monges varrendo o chão seguidos da palavra "enjoy" ("aproveite") e acho q é um exemplo legal dado o número de pessoas que, na minha prática profissional, comprovadamente DETESTA cuidar da própria casa, mudar a mente para fazer o que se DEVE me parece um ótimo conselho.
A base da Psicologia Positiva poderia ser sintetizada num clichê de perfil de whatsapp ou numa frase de parachoque de caminhão que dissesse "Eu nunca perco: ou eu ganho ou eu aprendo". E trata-se de desenvolver uma capacidade (bastante difícil na prática) de submeter a vontade à realidade e ser grato por isso. Nessa acepção, a Psicologia Positiva nos ensina a retroceder alguns passos antes de falar e agir, nos convida a ouvir primeiro e aceitar de modo "afável" o outro (tal qual no Budismo). Há ecos cristãos aqui enquanto intersecção entre Budismo, Estoicismo e Cristianismo (já que as 3 tradições tem em comum uma noção que fica clara) até mesmo nas palavras de Jesus Cristo em Mateus 6:22-34:
"A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; Se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo será tenebroso."
Voluntarismo, Intelectualismo e Monismo Hipostático
Particularmente, sou tanto um "monista lógico" (por acreditar que a lógica é o instrumento único que dispomos para basear a linguagem a nossa interpretação algorítmica da realidade) quanto um "pessimista lógico" (por crer que a lógica sozinha não dá conta de explicar a experiência do real pela via da representação através da linguagem, havendo de fato algo pessoal e incomunicável que é um "não-nada", realmente existente, paradoxalmente referível, demonstrável até, mas inacessível e não-compartilhável de um indivíduo aos demais inclusive no sentido original do termo "místico").
Justamente por ser um "monista lógico" não acredito que a distinção entre "razão" e "vontade" seja real. Creio tratar-se de uma "distinção de razão" já que "se posso inteligir o que desejo, ainda que não tenha por claro qual seja o tal desejo, ainda assim sei que desejo justamente algo que me falta". Parafraseando C.S. Lewis : "Se eu encontrar dentro de mim desejos que nada neste mundo pode satisfazer eu só posso concluir que eu não fui feito para este mundo". Cada desejo possui uma satisfação real, mas expressa (ao menos aparentemente) de modo distinto nos seres humanos em comparação aos demais seres vivos: se uma planta precisa de luz, solo e água essas necessidades existem de forma concreta num mundo em que plantas também existem; se um animal precisa de, por exemplo, comida e água, existem de fato coisas como água e alimento; mas, no caso do ser humano, é possível desejar algo que só exista como consequência de outra conduta ou mesmo como um mero estado interno (exs.: satisfação, felicidade, alegria, amor, etc.) ou ainda desejar algo que não te seja possível neste mundo (exs.: se teletransportar de lugar, voar sem maquinário, tornar-se outro ser diferente de si mesmo, etc.) e até mesmo desejar coisas incompatíveis entre si (por exemplo, quando uma mulher alegadamente diz: que ama a um homem pelo que ele é e, ao mesmo tempo, age continuamente atrás daquilo que o homem tem enquanto posses materiais, ou quando dizem querer um homem "forte" porém "sensível" ou, mais universalmente, quando almejamos a santidade e, ao mesmo tempo, há uma força simultânea e oposta dentro de nós que deseja o pecado e nos tensiona e faz "coxear" entre esses dois pensamentos). Razão e vontade operam de modo razoavelmente independente na mente se o quisermos pensar assim (seja na imaginação ou no intelecto) mas me parece haver algo como uma "união hipostática" que prende a ambos, intelecto e vontade, como dois lados de uma mesma moeda em que "o que quero posso inteligir, ainda que sem um referente claro porque o que é desejável, existe em algum dos níveis da realidade". Parece haver algum grau natural de paraconsistência no modo como o pensamento humano se manifesta na realidade dado o problema referido aqui.
Voluntarismo e Trabalho Psicoterapêutico
Como ilustrado nos exemplos anteriores, a média das abordagens psicológicas parte de algum grau de intelecção que se supõe agir sobre a volição: admite-se em algum grau que "a compreensão reoriente a vontade". Nesse sentido, há inclusive um desejo por parte do paciente de que algo dito e orientado pelo psicoterapeuta lhe mude a conduta, o sentimento ou a vontade e há ainda na prática um certo grau de decepção e desistência da terapia quando o terapeuta foca em mostrar os erros no pensamento do paciente e a necessidade de mudar sua compreensão (no sentido de "metanóia") planejando e assumindo as responsabilidades pelos próprios atos de forma consciente. O #paradoxo da Psicologia está justamente em pressupor a mudança da vontade a partir do intelecto e a contradição está, ao mesmo tempo (num mesmo sentido) pressupor a primazia natural da vontade sobre a razão.
Minha tentativa de dissolver esses problemas está justamente em observar uma "falsa dualidade" entre vontade e intelecto: sendo ambos interdependentes e observando que a linguagem e o pensamento englobam naturalmente problemas não passíveis de resolução (ex.: a capacidade de pensar e expressar o "nada" mesmo o "nada" não existindo), o pensamento humano me parece naturalmente paraconsistente devido tanto à polissemia no quesito "linguagem" quanto no quesito "desejo" já que podemos sustentar desejos incompatíveis entre si numa tensão entre "o que é x o que poderia ser", fenômeno este que, acredito eu, não pode ser realmente negado (apenas artificialmente, na mente).
Afinal de contas, na prática, parece tanto ser impossível mudar a quem não tenha a real vontade de fazê-lo quanto também parece ser possível (ao menos por algum tempo e, mais proeminentemente, na juventude) "educar o desejo" até certo ponto.
A clínica psicológica exige uma capacidade de equilibrar a necessidade emocional humana de conexão e acolhimento com doses regulares de razoabilidade. Ao contrário do que pensava Descartes, a razão é uma das coisas mais mal distribuídas entre os seres humanos. Todavia, se o conhecimento não é para todos e não é garantia de "salvar" ninguém, a que(m) se presta de fato a psicoterapia e qual é seu real alcance em mudar e/ou moldar a ação, o sentimento e o pensamento do outro apenas pela técnica? Estaria a razão em clínica psicoterápica "eternamente" submissa a uma implacável vontade curvada ante o anárquico e multifacetado totem da ditadura do desejo? A isto ainda não ouso tentar responder.
Referências:
DESCARTES, René. Discurso Sobre O Método (Tradução de Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima). Curitiba-PR: Hemus Editora LTDA., 2000.
HAN, Byung-Chul. Filosofia do zen-budismo. Tradução de Lucas Machado – Petrópolis, RJ : Vozes, 2019.
KREEFT, Peter. Sócrates Encontra Descartes [recurso eletrônico]; Tradução de Gabriel Melatti - Campinas, SP : Vide Editorial, 2012.
LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Traduzido por Gabriele Greggersen. 1a ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.