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Sobre a Natureza do Inferno

Eterno?

A mais impopular de todas as doutrinas cristãs estaria de fato na centralidade da fé? E estando, sua realidade ontológica já pode ser afirmada? Afinal, argumentos de castigo eterno justificados a partir da chamada "dignidade divina" fazem sentido? Vamos falar um pouco sobre isso hoje em nove etapas antes de propôr uma conclusão...

1) O Hades

Em primeiro lugar, é necessário lembrar que a Bíblia foi escrita em Hebraico (AT), Aramaico (AT) e Grego Koiné (NT). E o termo Hades que aparece no Novo Testamento (sim, porque não há "Hades" no Antigo Testamento), que pode ser traduzido tanto como "inferno" quanto como "morada dos mortos" e até mesmo como "sepultura", é um termo GREGO. Ou seja, foi um termo que passou por uma "apropriação cultural" e que não era o idioma original nem dos antigos hebreus nem dos judeus. Não sendo termo de "natureza abrâamica" já nos coloca em algum lugar de dificuldade porque para entender "o que diabos devo entender de Hades", com o perdão do trocadilho, precisaremos avaliar os campos semânticos tanto de Hades para os gregos quanto devemos investigar quais termos lhe seriam equivalentes em hebraico/aramaico (idiomas abrâamicos) e avaliar EM QUÊ ambos os campos semânticos convergem.

1.1) Quais passagens bíblicas distinguem Hades de Geena ou Lago de Fogo?

As passagens bíblicas que distinguem Hades de Geena (ou Lago de Fogo) destacam as diferenças entre esses termos como diferentes realidades pós-morte:

  • Apocalipse 20:13-14 apresenta a distinção clara: "deu o inferno (no original, Hades) os mortos que nele havia, e foram julgados cada um segundo as suas obras. E a morte e o inferno (Hades) foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte." Aqui Hades é o lugar intermediário onde as almas aguardam o juízo, enquanto o lago de fogo representa a punição final e eterna após o juízo.
  • Em Mateus 11:23, o termo grego "Hades" é usado para indicar o lugar dos mortos, contrastando com os vivos e o céu, mas não como um lugar de tormento eterno. Já a Geena, mencionada em passagens como Mateus 23:33 e Marcos 9:43-48, é simbolizada como fogo inextinguível e lugar de destruição eterna, não um local de espera.
  • Lucas 16:19-26 conta a parábola do rico e Lázaro, onde o rico está no tormento no Hades, mas ainda existe uma separação permanente com o Lázaro no seio de Abraão, ilustrando o estado consciente das almas no Hades antes do juízo final.
  • Geena (do hebraico "Vale de Hinom") simboliza um lugar de aniquilação total e destruição eterna, conforme Jesus usa para ilustrar a punição dos ímpios, enquanto Hades é o mundo invisível dos espíritos aguardando o julgamento.

Estas passagens revelam que Hades refere-se a um estado temporário ou local intermediário dos mortos, enquanto Geena ou Lago de Fogo representa o local de punição eterna após o juízo final.leituracrista+3

1.2) Cristo no Hades

Cristo no Hades, ou "Descendit ad Inferna" costuma ser encenado como "a ida do Jesus desencarnado ao infeno tomar as chaves metafísicas da morte e do inferno das mãos do diabo"... literalmente. Mas toda a cena parece teatral demais para se tratar realmente disso... Quer dizer, existe uma "chave da morte"? O inferno tem "portões" para serem trancados? O diabo "governa" o inferno como uma espécie de monarca déspota? Eu gosto de teatralidade, mas seu uso é para remeter a algo mais conceitual do que para encenar as coisas tal e qual elas de fato acontecem e eu pretendo me segurar nessa analogia.

Heber Carlos Campos, doutor em Teologia Sistemática, defende que houve uma "tomada de campo semântico" por parte da tradição grega que se sobrepôs, por razões culturais e religiosas associadas ao significado de "hades", ao que provavelmente era o pensamento hebraísta por trás da tradução do termo: a carga cultural do judeu sobre a morte se encerra na sepultura, e ao converter o conceito para o grego, o grego que se deparasse com "hades" não interpretaria naturalmente estarem falando APENAS da sepultura já que sua cultura e identidade religiosas imprimiriam por cima do conceito sua própria visão metafísica sobre o pós-morte. Por mais que um judeu soubesse grego, não há sinônimos perfeitos entre idiomas diferentes. Então, onde o judeu mirou em "Cristo desceu à sepultura" o grego leu "Cristo desceu ao domínio de Hades", que são duas afirmativas (que partem de suas metafísicas religiosas) completamente diferentes. O que nos leva à pergunta: o que é o "Hades" para o grego?

Fonte:

CAMPOS, Heber Carlos - Cristo no Hades

2) O Inferno Grego

"O conceito de "Hades" na mitologia grega refere-se principalmente ao reino dos mortos, ou mundo inferior, para onde as almas se dirigiam após a morte. É um lugar invisível aos vivos, situado nos confins do mundo, geralmente descrito como estando nas profundezas ou nos limites exteriores do oceano. Nesse reino, a alma se desprende do corpo e passa por um julgamento que determina seu destino, que poderia ser o Tártaro (prisão para almas amaldiçoadas), os Campos Elísios (morada dos virtuosos) ou o Campo de Asfódelos (terra dos mortos em geral). O deus Hades, soberano desse reino, é uma figura temida; seu nome muitas vezes era evitado por causar medo, e ele é acompanhado pelo cão de três cabeças, Cérbero, guardião da entrada do submundo. Hades não representa a morte em si, mas seu domínio e o destino dos mortos, sendo uma figura impiedosa (...). Cultos a ele eram raros, pois seu reino era separado da vida dos vivos e pouco relacionado ao cotidiano deles."

2.1) Aspectos principais do "Hades" como morada dos mortos:

  • Localização: submundo invisível, situado nos confins da terra, além do oceano e do mundo dos vivos.
  • Função: lugar para onde vão as almas após a morte, onde ocorre o julgamento.
  • Destinos possíveis: Tártaro (alma punida), Campos Elísios (alma virtuosa), Campo de Asfódelos (alma comum).
  • Guardiões: Cérbero, cão de três cabeças que impede a fuga dos mortos.
  • Figura do deus Hades: soberano do reino dos mortos (...).

2.2) Como funcionava o julgamento das almas ao chegar em Hades

O julgamento das almas ao chegar em Hades funcionava da seguinte maneira: após a morte, a alma era conduzida ao reino de Hades, onde deveria oferecer um óbolo (moeda) ao barqueiro Caronte para atravessar o rio e entrar no submundo. Lá, as almas eram apresentadas a um tribunal presidido por três juízes principais — Éaco, Radamanto e Minos — que avaliavam a vida e ações dos mortos. O próprio deus Hades assistia ao julgamento, e suas sentenças eram irrevogáveis, sem possibilidade de intervenção mesmo por Zeus.

(...)

Fonte:

https://www.perplexity.ai/search/me-explique-de-forma-panoramic-eT1.xu6OSfima7ptIU4xQA

O Hades grego vai, inclusive, servir de base imagética para boa parte das construções literárias do inferno, das quais, talvez a mais notável seja "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, com seus 3 tomos: Inferno, Purgatório e Paraíso, influenciando não só a literatura (e, talvez, teologia) de toda matriz de idiomas latinos como vai também deixar sua marca no imaginário coletivo mundial a respeito do Cristianismo como um dos grandes clássicos da literatura. Mesmo quem nunca o leu pode estar familiarizado com o conceito de "9 infernos" (no Budismo são 10 mundos e 6 reinos infernais, mas isso é só uma curiosidade gratuita para entrarmos no próximo tópico).

3) O Inferno no Budismo

Entender as palavras que costumeiramente traduzimos por "inferno" na Bíblia Sagrada e entender o pensamento grego sobre o que seria o "mundo dos mortos" está diretamente ligado ao problema da natureza do inferno mas citar o Budismo no mesmo artigo parece ser um distanciamento gratuito do ponto central do artigo, como numa "tergiversação". Só peço aos leitores um pouco de paciência para que eu explique meus motivos:

Ainda em meu tempo de faculdade tive um bom amigo que era budista e, em meio a uma de muitas conversas, tendo inclusive levado material de leitura para casa emprestado para entender como funcionava o pensamento dentro de uma religião oriental, meu colega me explicou que existe o conceito de "inferno" também no Budismo. Na sua vertente, enquanto um "estado de espírito" mas budismo é como igreja evangélica: tem muitas vertentes! Algumas delas, inclusive, entendem sim o inferno como um lugar, de forma parecida com o entendimento cristão.

Vou tentar então sintetizar as duas versões do problema a seguir pela ótica budista (enquanto leigo, afinal, não sou especialista no assunto).

Mais especificamente:

  • No Budismo Mahayana, o inferno é entendido como estados de sofrimento que são consequências diretas do karma negativo e que podem se manifestar tanto em reinos metafísicos como em estados mentais de sofrimento intenso.
  • Algumas interpretações, como as de Vasubandhu (filósofo budista), consideram o inferno essencialmente como um estado psicológico, uma manifestação da mente atormentada e suas projeções.
  • Também há a visão de que o próprio ciclo do samsara, no qual todos os seres experienciam sofrimento, pode ser interpretado como um estado infernal enquanto durar o apego e as ilusões mentais.
  • Em certos ensinamentos budistas, o inferno não é um lugar eterno, mas um estado de sofrimento temporário, podendo ocorrer aqui e agora como tormentos mentais profundos, além de possíveis reinos metafísicos.
  • Na tradição Theravada, o "Inferno" (Niraya) é reconhecido como um estado ou plano de existência literal onde seres podem renascer e sofrer intensamente devido ao karma negativo. (...) O inferno literal é um dos planos de renascimento condicionado pelo karma negativo.

3.1) Niraya, O "Inferno" Budista

No Budismo Theravada, os textos canônicos que descrevem os infernos literais pertencem principalmente ao Cânone Páli, especialmente nos discursos conhecidos como Suttas. Entre eles, destacam-se:

  • Os textos do Tipitaka, em particular o Dīgha Nikāya (Coleção dos discursos longos) e o Saṃyutta Nikāya (coleção de discursos conexos), que relatam várias descrições de reinos infernais, chamados de Niraya. Nestes textos, o inferno é retratado como um dos planos de renascimento, onde seres sofrem por karma negativo acumulado.
  • O Devadūta Sutta (do Majjhima Nikāya) também fala sobre seres enviados aos infernos para punição temporária devido a más ações.
  • Além disso, comentários tradicionais como os de Buddhaghosa, que elaboram e interpretam os sutras, dão mais detalhes sobre esses reinos inferiores e suas características.

O inferno literal no Theravada não é eterno, mas um estado passageiro condicionado pelo karma, que pode durar longos períodos e causar sofrimento extremo, mas do qual a alma pode renascer em outros planos.

Portanto, o Theravada vê o Niraya como um dos seis reinos da existência cíclica (samsara) descritos nos textos canônicos, com referências claras no Tipitaka Páli e nos comentários tradicionais como os escritos por Buddhaghosa.acessoaoinsight+3

Fonte:

https://www.perplexity.ai/search/existe-algum-conceito-no-budis-J.xx792TTzuhjWxOyFoH5A

...É possível que um pensamento parecido com o budista exista em germe em alguns cristãos mais leigos, afinal, quem nunca se perguntou se é possível "sair" ou não do inferno ou ainda, quem nunca pensou que "Deus é bom demais para mandar alguém pro inferno" e preferiu olhar para a maldade cometida pelo ser humano como o próprio "inferno na Terra"? O ponto que quero trazer aqui é que se há "versões" de inferno mesmo em religiões que não compartilham a mesma matriz cultural originária, talvez estejamos diante de algo "parecido" com "a regra de ouro" no sentido de que pode ser arquetipicamente universal ou, ao menos, um conceito amplo em culturas civilizatórias dotadas de estrutura social e leis complexas, então, para além da curiosidade, talvez a ideia de inferno esteja mais entranhada na psique humana do que gostaríamos de admitir e, alterando levemente o famoso "argumento do desejo" de C. S. Lewis, "se eu encontrar dentro de mim terrores que nada neste mundo pode expressar...", talvez isso seja um indicativo de alguma coisa.

4) O Inferno e o Credo Apostólico

"Creio em Deus Pai, Todo-poderoso
Criador dos Céus e da Terra
Creio em Jesus Cristo, Seu único Filho, nosso Senhor
O qual foi concebido por obra do Espírito Santo e nasceu da virgem Maria
Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado
Desceu em Hades, ressurgiu dos mortos ao terceiro dia
Subiu ao céu e está assentado à mão direita de Deus Pai, Todo-poderoso
De onde há de vir a julgar os vivos e os mortos
Creio no Espírito Santo, na santa igreja universal, na comunhão dos santos
Na remissão dos pecados, na ressurreição do corpo, na vida eterna
Amém!"

Este é o Credo Apostólico Cristão desde o Concílio de Jerusalém datado entre 48-50 d.C. Nele temos o "problema do Hades" tal e qual foi explicado pelo professor Heber Carlos Campos e a diversidade cristã de interpretações sobre esse "Hades" realmente parece não só ter origem grega mas se basear na repetição se quisermos assumir "dúvida razoável", afinal pra que a gradação "crucificado, morto e sepultado" precisaria culminar em "desceu em Hades" se esse "Hades" for entendido apenas como "sepultura"? Afinal, muitos ramos do Cristianismo acreditam em revelação progressiva e o próprio Jesus foi quem introduziu o conceito de "Inferno" (que posteriormente ecoaria sob diversas matizes nas cartas de Pedro Judas e no Apocalipse de São João). Não seria então esse "Hades" de fato o "Inferno"?

5) O Inferno como Desenvolvimento Póstumo

Falar de "revelação progressiva" ou ainda de "sucessão apostólica" tende a nos levar a algo que a academia secular admite há muito tempo e o cristão devoto resiste em aceitar: dogmas são CONSTRUÍDOS... ou, como alguns cristãos preferem, são REVELADOS. Se assim é, além do problema de saber quais são os limites da extensão da revelação divina (que eu não pretendo tratar aqui) temos a vantagem de podermos rastrear historicamente de onde vieram as concepções atuais de Inferno. E o "Inferno" como desenvolvimento póstumo precisaria comparar o que era dito sobre no Cristianismo dos primeiros séculos até chegarmos no que hoje os cristãos entendem a respeito. As duas tarefas são bastante extensas e complexas, mas achei um breve documentário (infelizmente de viés único, secularizado) sobre o tema... Mas é melhor que nada e "se não tem tu, vai com tu mesmo":

O "plot" do documentário é simples: o inferno é uma construção cultural, logo não é real. Ora, Wittgenstein¹ vai defender que a linguagem é uma "construção cultural" ao defender que "não existe linguagem privada"¹ e nem por isso a linguagem deixa de existir. O problema do inferno ser "culturalmente construído" como "desenvolvimento póstumo" me parece ser outro: descrições incompatíveis do que seria o "Inferno".

¹ - WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo: Biblioteca Universitária da USP, 1968.

6) O Inferno enquanto Revelação Metafísica

Qual a natureza do "inferno"? Ele pode ser experienciado? No budismo, sim, já que pode ser também visto como um "estado de espírito", mas estamos (novamente) falando de Cristianismo e, pelo menos na boca da maior parte dos cristãos, o inferno é uma "certeza de fé". E, por ser assim, trata-se de uma certeza "metafísica". Pra dizer no português mais claro possível: é uma certeza sem evidência ou prova, é uma certeza por necessidade do sistema de pensamento e confiança no discurso, no caso, de Jesus, seguindo uma interpretação bastante literalista, o que não costuma ser problema... a menos que a linguagem usada seja imagética e simbólica e, portanto, não-literal. Então, vejamos alguns textos sobre o inferno no Novo Testamento (afinal, o inferno não é realmente uma doutrina veterotestamentária ou seria também credo judaico, o que não é o caso):

Jesus comparou o inferno ao fogo (Mateus 25:41) , à escuridão exterior (Mateus 8:12) e relatou também que lá "vermes devoradores não morrem, e as chamas nunca se apagam" (Marcos 9:44). Mas como podemos ter "fogo", "escuro" e ainda dotado de "vermes imortais" num mesmo lugar. Natural e nominalmente toda a construção da ideia de "Inferno" soa como uma "contradição de termos" já que "vermes", "fogo" e "escuro" não combinam todos simultaneamente num mesmo lugar. Isso é admitido até mesmo por Luís Sayão, teólogo batista e hebraísta. Então, mesmo aceitando as "imagens terríveis" (certamente não se trata de um "lugar ou "estado de espírito" em que você gostaria de estar), não seria mais sensato admitirmos que "não sabemos o que de fato o inferno é"?

Fonte:

HolyCuts. O INFERNO É TEMPORÁRIO? – Luiz Sayão [Vídeo curto]. YouTube, 14 maio 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/shorts/ptF2HTYX_TY. Acesso em: 5 set. 2025.

7) A Natureza do Tempo na Eternidade

A natureza do tempo e da eternidade é um conceito que tentarei simplificar aqui da melhor maneira possível:

Tempo é "devir".

Devir é " vir-a-ser".

Vir-a-ser é "tornar-se algo".

Tornar-se algo é estar em "movimento".

Aquilo que é movido é posto em movimento por outro.

Não existe passado infinito (se existisse, o hoje não chegaria).

O movimento, todavia, pode ser infinito se assim for movido, independente da extensão do espaço... Portanto:

  1. O movimento exige uma CAUSA PRIMEIRA;
  2. A causa primeira PRECISA ser ETERNA para CONTER o MOVIMENTO;
  3. O tempo acontece DENTRO da ETERNIDADE;
  4. ETERNO é que sempre É, mas infinito é aquilo que começa, mas nunca tem fim (por ser contínua e imparavelmente movido).

Exemplos:

  • O conjunto dos números inteiros é infinito, mas começa com zero...
  • Aquilo que é eterno SEMPRE EXISTIU (existe e continuará existindo).
  • Tudo que existe ou sempre existiu ou começou a existir.
  • Só que tudo que começa a existir foi criado/gerado por outro que lhe seja anterior.

Simplificando: Eterno é que sempre houve-há-haverá; infinito é o que começa e não tem fim; e o tempo é um subconjunto dentro da eternidade.

Fonte:

OLIVEIRA. Jean Paolo Martins. A Diferença Entre Eterno E Infinito. Disponível em: <https://teletype.in/@jean_paolo/a-diferenca-entre-eterno-e-infinito>. Acesso em: 11 set. 2025.

8) Sobre a Justiça Divina

Para prosseguir na argumentação em direção ao aspecto da "Justiça Divina", entendendo que Deu é ETERNO, como já explicado no tópico anterior, nos resta entender como o conceito de "Justiça" funciona na visão da cosmovisão cristã. Em termos simples "Justiça é dar a cada um a recompensa moral que lhe cabe". Em outras palavras:

O Bem é a Justiça, a Justiça é a Verdade e a Verdade simplesmente É.
(t.me/FilosofiaEAfins/34597)

A "Justiça Divina" então, corresponde a Deus extender a causalidade dos atos a todas as pessoas.

Eu, particularmente, dividi o argumento em 3 proposições:

  1. PROPOSIÇÃO 1: Aquelas que não puderam agir ou não tinham controle/consciência de seus atos não podem ser julgadas (ex.: deficiente mental, bebê abortado, criança pequena, etc);
  2. PROPOSIÇÃO 2: Aqueles que tomam parte dos méritos de Cristo herdam a "vida eterna" e
  3. PROPOSIÇÃO 3: Quem rejeitar a salvação oferecida por Cristo recebem a paga de seus pecados.

Obs.: Muito embora eu entenda que a "Proposição 1" é problemática se assumirmos uma hamartiologia muito rígida: já que costumeiramente entendemos que o pecado se tornou parte da "natureza humana" poderíamos assumir, se levarmos o "sistema de pensamento" às últimas consequências, que "Deus não seria injusto ao deixar no inferno cada um dos exemplares da proposição 1" da mesma forma que alguns pensam que "Deus manter pecadores no inferno sofrendo eternamento por pecados temporais é algo 'BOM' ". Mas não creio em nenhuma dessas duas derivações e acho ambas INTRAGÁVEIS. Há algo disso em adaptações modernas do "Inferno de Dante" para o cinema (numa versão em anime, especificamente, há um local no inferno destinado a bebês abortados), na História do Catolicismo (quando surdos, por um tempo, foram considerados impossíveis de serem salvos já que não podiam "ouvir o evangelho") e na hamartiologia calvinista já que, levada às últimas consequências em "redução ao absurdo" (coisa que, até onde sei, nem Calvino fez), vai nos obrigar a admitir que "se a eleição não têm reverberações sinérgicas", Deus seria (probabilisticamente) justo ao mandar um bebê abortado para o inferno devido à sua onisciência antever que sua (ou suas) versão adulta (que nunca veio-a-ser) se tornaria alguém que rejeitaria a Cristo... ainda que essa admissão se dê apenas hipoteticamente.
Como eu disse outrora: IN-TRA-GÁ-VEL! Razão esta porque eu, assim como #CSLewis NEGO a doutrina da "depravação total" por algo que soaria mais como uma "depravação suficiente" (para responsabilização pelo pecado) já que a "totalidade da depravação" é uma tautologia que, creio, DESTRÓI o conceito de JUSTIÇA: sendo a Justiça uma retribuição, o pecado uma "depravação total da natureza" mesmo sem ser posta em ato, LOGO, seria "justo" um julgamento ANTES ou mesmo SEM o ato ser cometido, já que Justiça depende da causalidade e a causalidade é o próprio tempo.

Fontes:

BACCHIOCCHI, Samuele, Ph. D. Inferno: Tormento Eterno ou Aniquilamento? Biblia.com.br, s.d. Disponível em: https://biblia.com.br/perguntas-biblicas/inferno-tormento-eterno-ou-aniquilamentocd. Acesso em: 5 set. 2025.

LEWIS, C. S. O Problema da Dor. Tradução de Francisco Nunes. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.

8.1) Referências Bíblicas

Postas como verdadeiras as proposições 1, 2 e 3, tudo se resume em:

"Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor". (_Romanos 6:23.)

Mas aqui também podemos ser mais esquemáticos:

¹⁰ Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer.
¹¹ Não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus.
¹² Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só.
¹³ A sua garganta é um sepulcro aberto; com as suas línguas tratam enganosamente; peçonha de áspides está debaixo de seus lábios;
¹⁴ Cuja boca está cheia de maldição e amargura.
¹⁵ Os seus pés são ligeiros para derramar sangue.
¹⁶ Em seus caminhos há destruição e miséria;
¹⁷ E não conheceram o caminho da paz.
¹⁸ Não há temor de Deus diante de seus olhos.
¹⁹ Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus.
²⁰ Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado.
²¹ Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas;
²² Isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem; porque não há diferença.
²³ Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus;
²⁴ Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus.
²⁵ Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus;
²⁶ Para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.
Romanos 3:10-26

9) Os Argumentos da "Dignidade Divina"

"A gravidade de um crime é proporcional à dignidade do ofendido. Quanto mais digno o ofendido, maior a gravidade da ofensa cometida pelo ofensor".

Este é um argumento comum usado para designar porque um pecado contra Deus é visto como tendo maior gravidade do que um pecado contra o próximo, contra a natureza, contra si mesmo, etc. É simples de entender e exemplificar, afinal, nossa consciência nos diz que é pior roubar quando não há necessidade de sobrevivência, que é pior a violência cometida contra indefesos e que o mal planejado é pior do que o mal não intencionado. Mas eu tenho algumas objeções a esse tipo de argumento...

9.1) Quando Deus "Releva" o Pecado

"Há pecado que não é para a morte".1 João 5:17

É fato que "Deus, não levando em conta os tempos da ignorância, manda agora que todos os homens em todo lugar se arrependam." (Atos 17:30). Mas, ao ler o contexto de 1 João 5 algumas coisas pairaram por bastante tempo na minha mente. Por exemplo: estou lendo a mesma Bíblia que diz que Deus não tem o culpado por inocente (Naum 1:3) e que abomina os que tramam contra o inocente (Salmo 15)?

Voltando até o versículo 16 temos:

"Se alguém vir seu irmão cometer um pecado que não é para morte, pedirá, e Deus lhe dará a vida para aqueles que não pecam para a morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que ore. Toda injustiça é pecado; e há pecado que não é para a morte." (1 João 5:14-17).

Sabemos que a Bíblia classifica apenas um pecado como imperdoável (Mateus 12:31). Então, isso leva a pensar que os demais não necessariamente incorrem em "morte eterna" ou no "dano da segunda morte" de Apocalipse 20:14-15.

O que nos coloca diante da seguinte situação: ou todos os perdidos que cometeram pecados "que não são para morte" acabaram por cometer, por gradação, o "pecado para morte" ou não tiveram quem "pedisse a Deus" por sua salvação, certo?

Mas vamos pensar só nos cristãos nesse caso, pois o texto está falando de cristãos (afinal, não se chamava de "irmão" quem não tivesse a mesma fé). Sendo o texto para cristãos ele revela:

1 - A possibilidade do cristão cometer um pecado imperdoável contra Deus e;

2 - Os demais pecados não irão nos levar à morte eterna.

Quando olho para textos que endossam a crença da onipotência divina como Jó 42:2 que dizem com palavras diferentes quase a mesma coisa: "Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido." sempre me vem à mente qual o sentido de dizer coisas como "precisamos fazer a vontade de Deus"? Ora, se nada do que Deus planejou sai diferente do plano e isso inclui o "cálculo do livre-arbítrio" humano, nossas decisões erradas mas bem intencionadas ou desesperadas (e acredite, se você não teve uma ainda, vai ter...) têm alguma relevância?

Opa! Mas a matéria não era sobre sexo? Sim. E agora deixe-me dar um exemplo sobre sexo do contexto expresso acima: um rapaz cristão engravida a namorada mesmo sabendo que a igreja considera isso pecado de fornicação e decide se casar com a moça. Em primeiro lugar o pecado chamado "fornicação" é um pecado bastante nebuloso na Bíblia... Não vou tocar no âmbito dos pensamentos porque não se pode ler os pensamentos dos outros, mas se admitirmos que a situação da historinha dos namorados ocorreu numa relação exclusivamente monogâmica e todas as passagens usadas para falar contra relações fora do casamento na Bíblia se dão em relações em que há, no mínimo, um terceiro elemento (caracterizando prostituição ou devassidão e, no caso dos casais, adultério). Você pode checar isso em:

Dt 22:20-21; Jó 31.1; At 15:20,29; 1Cor 5:1-13; 6:9-10,13,15,18; Gl 5:19,21; Ef 5:5,8,11-12;1Tm 1:10; Hb 12.16; Ap 21.8.

E antes que algum engraçadinho venha com essa ideia já vou avisando que não estou defendendo de forma alguma relacionamento sexual antes do casamento porque as pessoas são criaturas de hábitos, tendem a repetir os mesmos erros e conhecem muito mal suas próprias emoções e as do próximo, o que faz com que, na maioria das vezes, "um abismo chame outro" e torne tudo um grande círculo vicioso.

Mas, na situação acima (que já observei em alguns casos na vida real), o ato foi isolado, motivado por certo descontrole, mas monogâmico... e produziu casamento. Eu posso dizer que isso aconteceu contra a vontade de Deus se eu o observar o casal unido e feliz?

É uma pergunta séria. Nós cristãos costumamos dizer coisas polêmicas como "O que Deus uniu não separe o homem" (Marcos 10:9) - ou "se separou é porque não foi Deus quem uniu" e coisas mais polêmicas ainda como o pastor Nelson Júnior em alguns vídeos em que declara que "o sexo já é o casamento" baseado na conversa de Jesus com a Samaritana em João 4:4-26. Quem tiver paciência, assista ao vídeo de 119 minutos:

https://youtu.be/tEgn2sIXnxo

Obs.: Interrompemos nossa programação para informar que pastor Nelson Júnior viu que:

a) Estava falando merda e deletou o vídeo;

b) Usou uma música da Rihanna ou do David Guetta ao fundo do vídeo e levou um strike do youtube;

c) Não conseguiu views o suficiente e mudou o formato dos vídeos do "Eu Escolhi Esperar";

d) Deletou o vídeo de propósito pra me fazer passar por mentiroso;

e) Todas as alternativas anteriores.

Quem não tiver (teve) paciência, adiante o vídeo para entre 26:04 a 26:50 e vai ver que não estou inventando coisas.

A punição para quem violasse uma virgem em Israel está bem clara em Deuteronômio 22:28-29 e era CASAMENTO:

"Se um homem achar uma moça virgem não desposada e, pegando nela, deitar-se com ela, e forem apanhados, o homem que se deitou com a moça dará ao pai dela cinqüenta siclos de prata, e porquanto a humilhou, ela ficará sendo sua mulher; não a poderá repudiar por todos os seus dias."

Me chamem de maluco se quiserem mas eu não estou enxergando onde está o castigo aqui... Tipo: quis? fez? agora assume. Agora imagine um casal que quisesse ficar junto contra a vontade das famílias, por exemplo. Eles poderiam (como alguns até hoje o fazem) recorrer a isso como solução. Estou sendo claro?

Por que nas outras situações a má conduta sexual era punida com a morte e nessa não? E por que diante dessa situação nas igrejas as pessoas ficam discriminadas ou perdem a boa fama? Acho que um dos malefícios da era moderna sobre relacionamentos é que eles demoram demais pra evoluir. Como já dizia a filha do seu Faceta: "Papai, eu quero me casar!" mas ao invés de perguntar "Oh minha filha, ocê diga com quem!" as pessoas de hoje dizem: "faz faculdade primeiro", "termina a pós", "não paga aluguel, não! - tem que fazer a casa antes", "compra um carro", "arruma um emprego pra não depender só do dinheiro dele", "muda de emprego", "aprende outro idioma", "vai fazer intercâmbio antes", etc, etc... What a hell!

Relacionamentos muito longos fatalmente vão terminar em sexo antes do casamento se não se deixar que os pobres Juleo & Romieta se casem, véi! É óbvio! É um dos motivos principais pras pessoas se casarem!

Vejam só, meu questionamento é o seguinte: essa situação específica pode ser interpretada como:

1 - "Pecado que não é pra morte", a ponto de Deus "relevar" e dizer "casem que tá tudo bem" ou

2 - O sexo é a própria consumação do casamento, do mesmo modo que Jesus deu a entender e que motivou o vídeo do pastor Nelson (assistam completo porque há outras nuances, sendo esta apenas a principal pois, como disse o pastor Nelson, "sexo é uma união de sangue com consequências para toda a vida").

Se prosseguirmos na mesma linha de raciocínio teremos a razão de a prostituição ser condenada: ela "quebra" a consumação do que se poderia, grosso modo, chamar de "casamentos anteriores" sendo o mesmo que adultério, na lógica que Jesus, como aplicado à Samaritana. Mais grave ainda: qualquer pessoa que já teve experiência sexual, se converte, "escolhe esperar" e casa de novo é, por definição de Jesus, adúltera! Mesmo sem casamento civil oficializado da ou das uniões sexuais anteriores. Agora resta saber qual a diferença prática entre fornicação e adultério, pois se em João 4:4-26 Jesus estava falando do casamento do Éden (sexo) e em Marcos 10:9 (o mesmo discurso se repete mais detalhado em Mateus 19:3-11) do casamento civil como é que ficam os fornicadores arrependidos, afinal, Deus fará vistas grossas a qualquer novo relacionamento que eles tenham desde que monogâmico e oficializado em cartório ou o casamento destes em si mesmo já lhes acrescenta o pecado de adultério?

Parece uma petição de princípio um tanto forte vinda de um Deus que tolerou a poligamia escancarada por tanto tempo no Antigo Testamento - e não estou falando de Elcana e suas 2 esposas legalmente adquiridas e sustentadas por ele (1 Samuel 1:1 e 8), mas de Salomão e suas 1000 mulheres... sim, eu disse 1000 MULHERES (1 Reis 11:1 a 3).

Ora, o Deus do Antigo Testamento fulminava pessoas por muito menos que isso (leia Gênesis 38:1-10 e 2 Samuel 6:1-8). Me arrisco a dizer que Deus tem assuntos mais importantes pra pensar do que sexo antes do casamento e poligamia ou teria sido mais claro no que estava dizendo... Mas posso estar errado.

Se alguém puder me ajudar a compreender melhor o assunto, fique à vontade pra comentar... Daqui até lá vou centrar minha opinião num saudável ceticismo até que alguém me prove que Deus não fez do sexo e do casamento outro entre tantos paradoxos bíblicos.

Fonte:

OLIVEIRA, Jean Paolo Martins de. Sexo e Casamento: Quando Deus releva o pecado... Ou quase. BLOG PROIBIDO PENSAR. Disponível em: https://proibidopensar1.blogspot.com/2014/12/sexo-e-casamento-quando-deus-releva-o.html. Acesso em: 08 set. 2025.

9.2) O Problema do "Ato em Si"

Vamos falar sobre multivaloração de atos morais. Imagine atos morais numa escala em que, uma ponta, temos o pior ato possível, o mais depravado e cruel de todos, e, na outra ponta, a maior de todas as bondades. Acredito que o maior problema em multivalorar atos morais é que alguns atos morais não me parecem sujeitos a escalas por seus resultados serem concretos. Explico: Diferentemente de algo roubado que pode ser devolvido, se eu mato alguém, não posso devolver a vida ao morto. Logo, a punição do ato, ao menos em tese, DEVERIA ser uma perda equivalente. Vemos isso, na lei de Talião: "Olho por olho, dente por dente". Se, eventualmente, hoje podemos devolver olhos ou dentes, e também evitamos pensar castigo em termos de "dor", sobra ser "criativo" e podemos propôr, por exemplo, que seja tirada do agressor a possibilidade de repetir o ato (e há muitos modos de fazer isso).

Qual ato poderia de fato "ofender" a Deus se ele, teoricamente, pode "desfazer" qualquer coisa? E, se não puder desfazer qualquer coisa ou...

  1. Não será mais onipotente, Ou
  2. Não agirá conforme sua onipotência por não desejar usá-la numa situação específica.

No exemplo 2, mantemos a onipotência funcional e onde ela deve estar: num paradoxo. Já a Palavra de Deus revelada nos propõe que Deus fará Justiça (Gênesis 18:25), mas que Ele é compassivo (Êxodo 34:6, Salmos 103:8, etc.) em "aguardar" o tempo certo para isso (Gênesis 15:16, Apocalipse 20:11-21:4). Mas não me parece que o logicamente adequado no sentido de "dar a recompensa e desfazer o mal" seja "torturar por toda eternidade devido à responsabilidade de um ato que pode ser desfeito". A menos que "não possa ser desfeito" e voltamos ao problema da onipotência conforme posto em 1 e deveremos admitir, como taoístas, maniqueus e zoroastristas que, em certo sentido, o mal e o bem são coeternos (e, me corrijam se eu estiver errado, essa não me parece ser a versão cristã "oficial" nem sobre a natureza do mal nem sobre os modos de afirmar a onipotência de Deus).

Fonte:

ALLAN, Dennis. O que quer dizer "encher a medida dos pecados"? Disponível em: https://www.estudosdabiblia.net/bd711.htm. Acesso em 08 set. 2025.

Claro que também me parece possível enquanto cristão afirmar uma "versão fraca" de onipotência onde a mesma seria apenas uma figura de linguagem para expressar que Deus faz o que não é possível a homem algum mas Deus teria sim limitações. Alguns candidatos a exemplos seriam um tipo de lógica metafísica inescapável como nos primeiros princípios; ontologicamente e materialmente, já que a escolha do material da obra determina o resultado necessariamente uma vez posto em ato) ou até mesmo seguindo uma linha "voluntarista" em que Deus simplesmente não faz algo não porque não possa, mas porque é caprichoso e não tem interesse nem vontade nenhuma de agir em certas direções. A "versão fraca" da onipotência parece mais adequada ao intelecto e à literatura bíblica e pode ser esplicada de qualquer uma das 3 formas exemplificadas e parece preferível a uma onipotência "literal" já que há pelo menos uma coisa que qualquer cristão de qualquer tradição deve concordar para ser considerado cristão e é uma limitação à onipotência divina: "Deus não pode pecar".

Se Deus pode desfazer o mal, o Inferno precisa:

  1. Ser algo "bom" - enquanto pode ser chamado de "bom" punir o mal, ou
  2. Contar com a presença de Deus - já que enxergar o Inferno como "ausência de Deus" só faz sentido se o Inferno for "aniquilação" já que Deus, como formulado na teologia cristã, precisa ser onipresente e, ao contrário da onipotência, a onipresença não tem via de ser anulada por "vontade" como o é a onipotência, ao menos não nas 3 pessoas da trindade (Ex.: Jesus, ao encarnar a primeira vez, abandonou a onipresença para estar corporalmente em um lugar de cada vez... Aliás, a encarnação criou uma SÉRIE DE PARADOXOS EM DEUS sobre os quais eu talvez escreva um dia... Por exemplo, se seu colega ateu resolveu te perguntar "se Deus tem nariz" a resposta é SIM já que Jesus é Deus!), ou
  3. Ser, de FATO, ANIQUILAÇÃO.

9.3) A Etimologia da Palavra "Dignidade"

Em sua origem, a palavra que hoje se tornou "dignidade", do original "dignitas" proveniente de "dignus" tem no cerne de seu "campo semântico" as ideias de "mérito" e "propriedade". Assim, poderíamos resumir a base da hamartiologia cristã nos diz que "Deus é digno, nós não", uma vez que o pecado dos primeiros pais (Adão e Eva) é transmitido (ou seria "imputado"?) aos seus descendentes. Portanto, não haveria realmente nenhum "mérito" ou "propriedade" humanos partindo da ideia de que "todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" (Romanos 3:23).

Se a "dignidade" de fato é atributo divino, e não humano, estaria melhor representada pelo termo "autoridade" por ser Deus o "autor da vida, do universo e tudo mais". Assim, para fins de seguir esta argumentação, vou assumir que o "núcleo" (o "core") de "dignidade" é a "autoridade".

Por conseguinte, o que chamamos de "dignidade humana" seria ontologicamente vazia e logicamente derivada da/subordinada à "dignidade divina" (a conclusão aqui se deriva da doutrina cristã do "Imago Dei": Deus é "digno"; o ser humano é criado à "imagem e semelhança de Deus"; logo, a dignidade divina se extende ao ser humano na forma do que chamamos de "dignidade humana"), seja na vida, seja na morte conforme Eclesiastes 12:7: “e o pó retorna à terra como o era e o espírito retorna a Deus que o deu.

Fonte:

https://www.perplexity.ai/search/qual-a-etimologia-da-palavra-d-ccCEkmrhSEGz2ct21grlwQ

No Cristianismo, "do Senhor é a Terra e tudo quanto nela há" (Salmos 24:1), portanto, o homem "não tem propriedade"... ao menos não propriedade extrínseca. Mas pela mesma razão do argumento anterior, alguma "propriedade" pode ser extendida ao ser do homem se entendermos que Deus enquanto doador, sendo "autor" daquilo que doa ou, se tentarmos nos expressar com mais precisão, daquilo que "empresta" (afinal, qual o sentido de "doar" para "tomar de volta"?) temos como nossa propriedade (além de nossa morte) o nosso corpo. C. S. Lewis dizia que "Você não é um corpo que tem uma alma. Você é uma alma que tem um corpo". Então, de algum modo impróprio, nossa vida não nos pertence porque não somos nossos próprios sustentadores nem causamos a nós mesmos (afinal, isso seria absurdo), mas em algum sentido nossas "almas" (enquanto "vida" manifesta no corpo) são "nossas" enquanto algo ali imiscuído revela nossa identidade.

Se aceita essa interpretação, a conclusão necessária é que todos os pecados são indignidades cujo salário é morte e, uma vez que todos pecaram, não resta ninguém entre os humanos que seja "digno em si". Nossa consciência insiste em agravar ou abrandar julgamentos baseado nas condições do pecado cometido talvez por resquícios da Imago Dei em nós, não totalmente depravada como o querem alguns sistemas teológicos.

Veja, biblicamente o próprio Jesus ilustrava em parábolas que Deus também reconhece esse senso de gravidade para o bem ou mal cometidos porque Deus nos recompensa e mesmo fora dos evangelhos esse tipo de "raciocínio econômico" também aparece nos ensinos apostólicos (Mateus 25:14-30; Lucas 12:45-48, Hebreus 11:6, etc). Se formos procurar problema de fato nesse entendimento de "dignidade", o senso de "valor" de onde deriva essa "dignidade" é que pode ser problemático: Veja, se todo valor e autoridade "emana" de Deus, o ser humano é "eternamente despojado" - se o ser humano nada tem de valor em si e nada pode dar a Deus, por que Deus deveria "valorar" nossos pecados a ponto de nos responsabilizar? Não faz muito sentido cobrar de alguém que nada tem, especialmente se o que esse alguém tem de posse pode ser expropriado, reapropriado ou até anulado pelo "dono" em questão a qualquer hora. O que poderíamos ter para que Deus quisesse, já que Ele literalmente nos deu e nos dá tudo?

É por isso que eu estou utilizando a palavra "autor" - o autor autoriza, autua, escreve e se responsabiliza pelo que põe em ato ao (d)escrever. Levando um pouco para o lado do storytelling, podemos dizer que o autor é quem tem a liberdade de dizer "que mundo é aquele" que está sendo (d)escrito com suas regras, seus ambientes e seus personagens. Mas o personagem permanece com as caractereísticas dadas e aprendidas e permanece dono de suas decisões mesmo quando o autor as determina. As responsabilidades não se anulam, só estão em níveis diferentes. Entretanto, a "vontade" do autor em direcionar a história "assim ou assado" é soberana do autor.

O que nos leva à questão de se a gravidade de um mal ato é (ou não) realmente proporcional à dignidade do ofendido. Por mais que se entenda que "quanto mais digno o ofendido, maior a gravidade da ofensa cometida pelo ofensor", não se segue que seria justo receber punição de DURAÇÃO ETERNA apenas porque o ofendido é eterno em "dignidade". Tal alegação extraordinária só faria sentido se esta for a "vontade" arbitrária do autor. O que nos leva ao próximo problema, sobre a possibilidade (ou não) de resolver "o problema do mal".

9.4) A Questão do Aniquilacionismo

Como vimos anteriormente, temos 3 opções em relação ao inferno (seja ele o que for): ele tem que ser "bom" (o que pode ser questionado, já que aparenta ter em si uma desproporção ao ato punido); que Deus precisa estar lá (então, de modo direto ou indireto, seria ele a "causa" do sofrimento no inferno, o que parece ser difícil mas não impossível de aceitar no caso de um Deus onibenevolente) e a opção que me parece mais logicamente e etimologicamente adequada ao modo obscuro como a escritura monta o tema é justamente a terceira: resolver o problema do mal não seria, na verdade, eliminá-lo de uma vez por todas? Fazê-lo cessar? Impossibilitar que os "crimes" cometidos se repetissem?

Vejam, a linguagem usada pela Escritura não é única, mas muitas vezes é mais imagética que literal, daí termos inconsistências entre termos como "vermes", "fogo" e "trevas". Mas o desfecho para o problema do mal dado tanto no Apocalipse quanto pelo próprio Jesus é "fazer perecer tanto o corpo quanto a alma no inferno" (Mateus 10:28) e "perecer é cessar". Sei que há propostas metafísicas diferentes para o entendimento do que seja a "segunda morte" (como a que diz que, ao serem lançado "a morte" e "o inferno" no lago de fogo tudo passaria a existir para sempre porque a "morte" enquanto "cessação" já não existiria) mas olhando para uma lógica simples "morrer não é viver para sempre sendo torturado". Existe um adágio popular que diz que "a vida é sofrimento" e, filosoficamente, sabemos que "não existe vantagem alguma na inexistência". Então, com que coerência podemos afirmar que "morte eterna" é "viver para sempre"? Eu, ao menos, não vejo como. Morte é morte, e morte não é vida.

Entendo que o argumento aqui é uma faca de dois gumes, já que quem advoga um inferno eterno poderia dizer que Deus, em sua "misericórdia", prefere deixar os perdidos sofrendo para sempre do que aniquilá-los já que "não existe vantagem alguma na inexistência", mas eu continuo entendendo que a questão aqui não RESOLVE o "problema do mal" e torna Deus, ao menos no aspecto do juízo, ineficiente (Salmos 6:5, Salmos 115:17-18, Isaías 38:18-20).

Conclusão

Resumindo a linha de raciocínio da argumentação, vejamos se a mesma faz sentido:

  1. Hades é sepultura.
  2. O Hades Grego é a raiz do entendimento de inferno como "lugar".
  3. Outras religiões, a exemplo do budismo, podem entender o inferno como lugar ou estado de espírito.
  4. O Inferno / Hades no Credo Apostólico é (ou parece muito ser apenas) a sepultura.
  5. A doutrina cristã do inferno é um "desenvolvimento posterior" ao Cristianismo Primitivo e tem suas raízes no imaginário grego.
  6. As descrições bíblicas do inferno são imagéticas e não literais por usarem termos incompatíveis entre si.
  7. O tempo está dentro da eternidade, a eternidade está apenas na divindade e em tudo que existe Deus precisa estar presente enquanto sustentador.
  8. A Justiça Divina é eterna tanto em sua recompensa aos crentes em Cristo quanto no castigo dos pecados cometidos pelos "filhos da desobediência".
  9. Da "dignidade" da Justiça Divina não só não se segue necessariamente a eternidade do inferno como o conceito de eternidade no inferno torna o mal algo eterno e o problema do mal insolúvel em última análise.

Vejam bem, eu NÃO SOU TEÓLOGO! Algo do que eu disse pode ter representado mal alguma das doutrinas citadas (Hamartiologia, Soteriorologia, Antropologia Bíblica, Escatologia, Metafísica Cristã) e, se assim o for, estou disposto a discutir e voltar atrás no que disse uma vez que eu seja convencido racionalmente de uma abordagem melhor. Assevero o mesmo a respeito dos idiomas originais em que os textos bíblicos sobre o assunto estão presentes: não sou hebraísta nem filólogo.

Meu único objetivo em escrever este artigo foi, enquanto cristão, aclarar minhas próprias ideias a respeito da doutrina do inferno a partir do conhecimento que tenho hoje de storytelling, Filosofia e Lógica porque realmente me parece que o entendimento médio sobre o tema, ao menos se levarmos em consideração a apresentação que chegou a mim tem um número tão grande de inconsistências que não parece estar certo.

No mais, espero sinceramente que as descrições apresentadas sobre o entendimento comum das doutrinas das quais "a doutrina do inferno" depende e que tentei aqui contrargumentar não se trate de um "argumento espantalhado" e que a leitura desse artigo não induza ninguém a erro em matéria de fé, mas nos ajude a entender melhor em que a doutrina do inferno consiste ou, ao menos, o que de fato não podemos afirmar ou derivar dela.