CAPÍTULO XIX: BARREIRA
Pessoas morrendo por cães infernais. Cecilly indo embora. Confusão e euforia. Tudo estava estranho para dizer o mínimo dentro dos muros da academia. E com tudo isso, eu nem tinha tido tempo de esbarrar com Killian em algum lugar e isso era a droga de um ponto positivo.
Mas mesmo sem nenhum pronunciamento da diretora Witwer, todos pareceram voltar ao normal nessa terça feira, depois daquele sábado maluco.
A professora MiMi tinha chamado, a mim e minha irmã, para nossa primeira aula particular sobre a nossa pequena deficiência em relação a arte de conjurar feitiços.
Como éramos incapazes de fazer magia separados isso acabava limitando tanto nossas opções que se não entrássemos em um consentimento em uma batalha, provavelmente seriamos mais inúteis do que qualquer aprendiz.
Contudo quanto mais poderoso você é mais difícil era para usar esse poder.
E isso também estava contra nós.
Lexa parecia ter ficado animada, como se aquilo fosse uma oportunidade para fazer magia individual ou algo assim, eu por outro lado estava mais realista sobre nossas chances para tal.
Nossa aula foi depois do jantar, então já tínhamos tido as lições do dia tanto em demonologia quanto em artes especializadas com a turma completa.
O buraco causado com a saída de Cecilly deu um ar estranho a sala. Não que todos se importassem com ela, mas sempre que a primeira peça era movida, o restante parecia cair em cascata. Então acho que todos ficavam pensando, quem seria o próximo. Qualquer coisa poderia acontecer na cidade feita de fumaça.
Joshua estava preocupado com alguma coisa esses dias, não soube dizer o que era. Mas ele tinha voltado a prestar atenção em Amora van Allen durante as aulas. Ela causava nele alguma admiração e curiosidade, que eu achava ir mais do que a atração física.
Amora em si era linda, e isso era inegável, mas eu estava longe de passar meus dias prestando atenção na beleza feminina que permeava a academia.
Desci para tomar mais um banho depois do jantar, mesmo não tendo soado ou me sujado muito. Mas eu não fazia a menor ideia de quanto tempo à aula iria durar.
Uma das cabines estava ocupada, mas era impossível ver alguma coisa naquele vidro preto.
Entrei na cabine livre mais próxima, ainda com meia hora de sobra. A água era quente e relaxante, o chuveiro lá de casa vivia quebrando. E o vovô tinha entrado na onda de consertar as coisas com as próprias mãos, como os humanos faziam, e bem, morrer eletrocutado já estava na minha lista de possibilidades de morte fazia um tempo.
Enrolei a toalha na cintura e sai da cabine sem esperar que ainda houvesse mais alguém aqui dentro.
Então ele virou todo seu corpo na minha direção, e se apoiou na pia, ficando de costas para o espelho. Sua boca ainda suja da espuma do creme dental, e a escova de dente vermelha na mão. O cabelo ruivo molhado e o corpo ainda com gotículas espelhadas pela pele e pelos músculos no corpo. E a toalha, como a minha, na cintura.
Disse totalmente abobado, segurando com toda força na minha toalha. Forçando meu corpo a não mostrar nenhuma reação física de excitação.
Ele não respondeu, mas me encarou. Killian voltou a se virar, cuspiu na pia e limpou o rosto. Em vez de fugir eu continuei ali sem saber o que fazer. Ele voltou novamente a se virar para mim, então o vapor subiu pela sua pele e seu cabelo agora estava seco como todo o resto. Como se ele tivesse esquentado o corpo a uma temperatura que fizesse a camada de água. Logo em seguida ele simplesmente saiu transbordando a sua feição natural, fechada e misteriosa, e principalmente irritante.
Continuei parado por uns minutos até perceber que meu corpo estava involuntariamente mostrando sinais de excitação.
Lexa perguntou da varanda da Casa do Leão.
Ela tinha posto seu uniforme novamente e tinha seu livro das sombras em mão, eu não pensei em pegar o meu.
Voltei a virar meu corpo para trás, na direção da porta que tinha sido aberta, olhamos para ela por um segundo e depois ela se desfez, não para dentro da casa, mas para o ginásio de aulas práticas, onde a professora MiMi disse que nos encontraria.
Assim que entramos o lugar parecia muito diferente da primeira aula de Prática e Exercício de Bruxaria.
Primeiramente pelas estantes espalhadas, a mesa circular, e os globos de vidro no chão.
A professora MiMi estava usando seus estranhos vestidos habituais e parecia mais decidida do que de costume.
Disse ela para cadeira em frente aos vários globos de vidros espalhados no chão.
Eram duas poltronas pretas de couro, bastante confortáveis por sinal.
– O que a senhora quer que a gente faça?
– Que pensem em um dos globos e o acendam com sua magia.
Lexa e eu demos as mãos, mas fomos cortados.
– Porém, não quero que digam qual globo querem acender, nem que usem a conexão mental para escolher. Quero que só pensem.
– Mas se só podemos fazer magia quando pensamos exatamente na mesma coisa, tentar fazer isso não vai funcionar.
Demos as mãos mais uma vez e tentamos.
Levei minha concentração ao globo da ponta, havia pelo menos vinte deles de tamanhos bastante variados, mas nada aconteceu, Lexa por sinal apertava minha mão impaciente.
Ela acrescentou irritada, isso tudo com apenas cinco minutos de aula.
– Sim, me digam qual globo pensaram em acender.
Apontamos com nossas mãos livre para eles, eu para o da ponta e Lexa para o do meio.
– Agora me respondam, por que esses?
– Você pediu para escolher um, não disse que tinha que ter um significado.
– Não pensei exatamente na escolha, só escolhi.
Disse tentando colocar educação naquela conversa.
– Bem, vocês entenderam que se não pensarem na mesma coisa sua magia se torna inútil, mas em uma batalha vocês não terão tempo de dizer o que querem fazer, muito menos em debater sobre o que fazer. Precisam pensar como uma só pessoa, para que se tornem realmente poderosos.
Lexa voltou a falar sem medir as palavras.
– Não, não é. Por exemplo, parceiros de trabalhos que trabalham juntos há anos constroem uma linha de raciocínio única, sabendo que se um deles pisar para esquerda o outro sabe exatamente o movimente seguinte, sendo ele qual for. Casais casados a décadas também, mas vocês não têm décadas e sim alguns meses e vão precisar aprender a ter uma linha de pensamento único em batalha, sabendo sempre o que o pensar, só com um olhar, sem precisar falar ou de mensagens telepática. É isso que os torna poderosos, o fato de aumentarem o poder um de outro, e serem uma única coisa que se move, pensa e age.
– Então temos que aprender o que se leva mais do que alguns simples anos em algumas semanas?
– É, exatamente isso. Vocês são gêmeos, são naturalmente ligados, mesmo sem a magia. É só uma questão de aceitar isso.
– Mas isso não faz de nós dois clones iguais, senhora MiMi – acrescentei – Lexa e eu somos bastantes diferentes um do outro, não concordamos em quase nada, muito menos no uso da nossa magia.
– Por isso precisam achar um meio termo onde os dois concordem e trabalhar em cima dele. Se focar sempre em um plano de batalha e segui-lo, com o tempo seus cérebros estarão treinados o suficiente para reconhecer o que o corpo do outro diz, até lá, precisam achar um ponto para se apoiar. É usar somente a intuição.
– Então o que podemos fazer para agilizar isso?
– Vamos descobrir. Agora voltem para as lâmpadas. Tentem criar algo que pareça lógico em suas mentes e que provavelmente o outro também vai pensar.
Voltamos a nos dar as mãos agora mais impacientes que antes.
Miramos nossos olhares para os globos e novamente nada aconteceu.
Tínhamos que achar algo que ambos pensaríamos chamar nossa atenção, nesse caso chegou a ser um pouco óbvio.
O globo do meio era o maior deles, e ficava tão centrado em meio aos outros que parecia proposital, então levei meus pensamentos até ele esperando que Lexa pensasse na mesma linha de raciocínio. E ele se acendeu e nos sorrimos.
– Somos eletricistas, perfeito. Mas é o resto?
Lexa perguntou ainda sem conseguir se conter.
Continuamos assim por mais algum tempo. Acendemos os globos que formaram as quatro pontas, que se mostrou um pouco mais difícil no início. E depois fomos conseguindo acompanhar, mas nosso ritmo era tão lento quanto de uma tartaruga senil. Então não foi exatamente nada para se orgulhar.
Disse a professora MiMi finalmente mudando alguma coisa. Na mesa não ficaríamos um do lado do outro, mas sim na frente. Um baralho de cartas longas e estranhas estava parado no meio dela.
– Cada um de vocês pegará uma carta, e o outro tem que adivinhar qual carta ele segurava.
– Não podemos ver o que o outro vê.
– Vocês não fazem a menor ideia do quão poderosa é a conexão mental de vocês dois é de verdade. A telepatia que possuem é só uma pequena fração do que são capazes, já devem ter percebido que em momentos de crise podem sentir o que o outro sentem, como se ela viajasse para vocês.
Lexa balançou a cabeça em concordância. Eu não sabia disso.
– Essa conexão foi pouco utilizada por não ter sido explorada ainda por causa da distância que se mantiveram por boa parte da vida. Com o tempo ela pode se desenvolver para muito mais.
– O que seremos capazes de fazer?
– Muitas coisas, em forma prática vocês tem muitas das habilidades que um círculo de bruxos possui, mas para cada par de bruxos gêmeos é um pouco diferente. Vocês são um evento místico de ocorrência muita rara. O último par de gêmeos morreu há mais de cem anos atrás. Então para que vocês possam saber o que são capazes, vão precisar testar. Ir além do que conhecem, mas principalmente saber o que estão fazendo. Pois ser corrompido por grande poder é tão fácil quanto nascer sem ele.
Então assentimos. A ideia de nós dois virarmos armas do mal não nos alegrava em nada, e nem Lexa teve algum comentário para colocar. Isso explicava também um pouco do medo de todo mundo. Éramos raros, poderosos e pouco conhecidos, e isso não deixava exatamente uma boa aparência no tapete vermelho da magia.
Retirei a primeira carta e só então percebi que não era um barulho comum, com copas, espadas, reis e rainhas, mas um barulho de tarô.
A carta na minha mão era o Mágico, o que me fez rir um pouco. Mas disfarcei o máximo que pude.
Lexa cravou seus olhos em mim tentando ler as feições do meu rosto.
– Tente ver através dos olhos do seu irmão, minha querida. Foca-se nele.
Disse a professora e Lexa obedeceu fechando os olhos e se concentrando.
Um, dois, três, quatro e cinco minutos se passaram, e isso me surpreendia, Lexa estava ali parada sem se mover tentando ver o que estava na minha mente.
Disse quase pulando da cadeira incrivelmente mais feliz.
Olhou para mim apreensiva esperando que eu virasse a carta o mais rápido possível. Então eu virei.
– Eu sou maravilhosa, pode dizer.
Ela tirou e olhou rapidamente sem demonstrar emoção. E guardou para perto de si, nem mesmo dando uma segunda olhada.
Fechei meus olhos e tentei refazer o que Lexa fez com a carta, até o ponto em que ela estava parada a olhando, então a imagem surgiu nítida e fácil na minha mente.
Disse não gostando nada do som daquela palavra, e o que ela me lembrava dessa manhã.
Ela perguntou batendo a mão na mesa.
Respondi fitando a professora MiMi. Ela riu.
– Seu irmão está mais acostumado a usar a mente dele para descobrir as coisas a partir da mente dos outros, é muito compreensivo que ele domine com mais facilidade a capacidade de entrar na sua mente.
– Isso não é justo, ele é melhor na telecinese e agora nesse lance de espiar a minha mente também?
Perguntou ofendida, ela não gostava muito de ficar para trás.
– Seus dons ainda estão somente na superfície minha querida, é muito comum que você ainda não faça ideia do que realmente seja capaz de fazer ou de todas as formas que ele pode ser utilizado, além do mais, alguns bruxos desenvolvem dons secundários ao longo de sua formação. Então dê tempo ao tempo.
Peguei uma carta novamente e olhei. O peregrino.
Ela levou menos tempo para descobrir, mas eu ainda era mais rápido.
Continuamos com o jogo bobo até todas as cartas acabarem, no final já éramos capazes de saber o que o outro tinha atirado assim que ele batia o olho na carta, mas não sabíamos se conseguíamos fazer isso em um quadro geral. Ver tudo que o outro via não só uma figura especifica.
A professora disse batendo palmas, se divertindo bastante que nosso joguinho de criança.
Disse ela sacando uma adaga do ar.
– Não, não, não – Lexa entoou – Esse lance de sentir a dor dos outros ou de completar as frases não funciona com a gente, então esquece.
Disse a professora desanimada.
Mas ela se calou, seu rosto mudou, uma feição estranha que eu nunca tinha visto nela.
Então ela desapareceu em fumaça. Uma porta se abriu atrás de nós e fomos simplesmente ignorados.
– Você pergunta como se eu realmente tivesse a capacidade de saber o que se passa na cabeça dessa mulher.
Lexa respondeu com desdém. Atravessamos a porta e fomos parar nos fundos da Casa Cinza.
Mesmo sendo noite, alguns alunos ficavam do lado de fora dos dormitórios, mas era a primeira vez que eu via todos do lado de fora olhando para o mesmo ponto. Para cima.
Joshua perguntou agarrando o meu braço e o da Lexa.
Disse sem ainda olhar para cima.
– O que está acontecendo aqui fora?
Respondeu ele levantando a cabeça e finalmente fizemos o mesmo.
A barreira protetora da academia, o véu de energia que impedia tanto os humanos de ver o que acontecia aqui dentro, quanto outras criaturas de nos atacar, estava rachando. Não como se fosse se partir, mas como se algo tentasse entrar, e a barreira estivesse lutando para impedir. E ela estava conseguindo.
Um brilho vermelho e escuro emanava das rachaduras, e um estranho frio que chegava a tocar meus ossos parecia emanar dela.
– Alguém está tentando entrar.
– Não, alguém está tentando nos derrubar.
Então aquilo começou, a respiração de todos começou a surgir no ar, como se algo estivesse morrendo perto de nós. A grama parecia murchar.
Joshua franzia a testa como se sentisse a energia do lugar sendo drenada.
Todos começaram a se aproximar de quem estivesse mais perto, como se um estranho medo corresse o chão e chegasse a nós pelos nossos pés.
Um trovão soou no ar, assustando a todos. E mais dois, todos eles vermelhos como sangue. Então um atingiu a barreira. Ela suportou como parecia fazer sempre. Não criou uma rachadura nova, mas ela agora reluzia fracamente em tom avermelhado.
Então outro brilho nos cegou, e quando a luz desapareceu a barreira estava novamente intacta e nada parecia ter acontecido.
Todos viramos para a direção de onde a luz tinha sido emanada. A diretora estava lá, todos os professores ao seu lado. E algo estava acontecendo.
– Todos para seus quartos. Agora!
A diretora gritou e depois todos eles desapareceram em fumaça.