September 3, 2023

VI • Dominic's Interlude

Havia uma música de fundo. Algo lento e de melodia harmoniosa.

Parecia algum tipo de canção romântica. A voz que a cantarolava estava distante de mim, porém eu a ouvia atentamente.

Meu corpo todo estava relaxado sobre algo macio e quente. Confortável.

Meus olhos permaneciam fechados enquanto eu ia tomando conhecimento do que estava ao meu redor. Havia um travesseiro bem abaixo da minha cabeça, um lençol fino envolvia minhas pernas em um emaranhado de cobertas e um pequeno urso de pelúcia estava junto a mim. A sensação térmica estava quente e meu corpo parecia responder ao calor com pequenas gotas de suor espalhadas pelas minhas costas.

Eu estava deitada de lado em uma cama grande e o som que eu ouvia vinha do rádio relógio na mesa de cabeceira.

Abri meus olhos lentamente, como se estivesse acordando de um sono profundo.

Estava tão agarrada ao pequeno urso que parecia partir o animal em inúmeros pedaços ou prestes a isso. Observei tudo ao meu alcance até que consegui finalmente sair da cama e andar pelo quarto.

Em cima da mesa do computador havia um pequeno porta retrato e um painel com inúmeras cartas grudadas por alfinetes de estrela. Passei os dedos sobre as folhas cortadas em forma de coração e reconheci alguns nomes ali. Quando cheguei perto suficiente para ler o que estava escrito tive vontade de sair correndo.

Eram cartas dos meus familiares dando seus pêsames pela morte do meu irmão.

Imediatamente coloquei a mão na boca e meus olhos se encheram de lagrimas. Uma dor tão sufocante que parecia ter consumido toda a saliva da minha garganta tomou conta de mim.

Imaginar perder Bruce era algo insuportável.

Um desespero me consumia a cada passo que eu dava para longe daquele mural. Então minhas pernas pareceram perder as forças e eu desabei no chão.

Chorei feito uma criança um longo tempo. Sentindo cada parte do meu corpo se contrair a cada soluço. Eu estava curvada por cima de minhas pernas flexionadas chorando desesperadamente e desejando ser eu em seu lugar.

Então sai de minha posição e ergui o braço até a mesa de cabeceira e peguei uma pequena foto dentro da gaveta superior.

Eu e um garoto que eu não conhecia estávamos abraçados de forma tão amigável em um parque ensolarado, rodeado de árvores de folhes cor de rosa. Minhas feições não eram de pura felicidade, estavam mais para um sorriso debochado, mas era evidente a minha cumplicidade pelo tal garoto.

Abracei a foto como se pudesse fundi-la a mim e chorei por mais um tempo.

Um turbilhão de pensamentos passando pela minha cabeça. Imagens onde dias felizes pairavam pelo ar. Dias que eu sabia não poder existir mais.

Queria mudar aquilo, queria tê-lo outra vez e estava disposta a tudo para isso.

Depois de um tempo virei à foto e no seu verso estava escrito com uma letra cursiva e bem desenhada.

"O melhor irmão do mundo".

Porem eu não conhecia aquele garoto e não entendia porque estava chorando a morte de alguém. E pior, havia o confundindo com Bruce.

A sensação de perda não passava e quando bateram na porta eu guardei a foto com a maior rapidez que pude. Como se fosse um tesouro apenas meu que não esperava compartilhar com ninguém.

– Está tudo bem com você filha?

Perguntou uma voz aveludada e feminina.

Uma voz que não era da minha mãe.

Acordei com um sobressalto e desesperadamente tentei me desvencilhar de todas as imagens possíveis daquele sonho. Mas mesmo que soubesse que não era Bruce e nem uma pessoa conhecida uma dor me consumia por dentro.

A mesma dor que havia me consumido há uns nove anos atrás.

Era mais um daqueles sonhos. Aqueles, que sempre queria evitar.

Já havia visto aquele mesmo garoto da foto algumas vezes há anos atrás, porém nunca soube dizer nem o seu nome. Era um total desconhecido para mim.

Como de costume levantei antes mesmo que as poucas memórias me deixassem no absoluto escuro e procurei por meu caderno escondido no armário de sapatos.

Em frente à minha cama havia um pequeno armário de sapatos na qual guardava centenas de cadernos que adquiri durante os anos de sonhos incompreendidos.

Depois de uns dois anos de sonhos estranhos decidi escrevê-los a fim de um dia encontrar uma ligação entre eles. Por isso às vezes conseguia fazer ligações com pessoas e ocorridos dos sonhos.

Os cadernos ficavam guardados em uma parte funda do armário onde ninguém mais, além de mim, tinha acesso. Sempre que podia e tinha tempo eu os relia procurando por alguma pista do que poderiam significar aqueles sonhos.

Peguei o caderno de capa amarela com poucas folhas em uso e escrevi detalhadamente o que lembrava. Um cenário que também já havia visto muitas vezes.

O quarto de uma garota com bastante fanatismo por música.

Notas musicais decoravam as paredes do quarto e a cama enorme era exagerada para o que ela realmente precisava. Tinha muito lilás e livros espalhados por todos os lugares.

Ela não era nem um pouco organizada, mas mesmo assim eu adorava toda aquela vida em seu quarto.

Não entendia a ligação que eu tinha com aquela garota, mas quanto mais sonhava com ela mais me sentia conectada a sua vida. Como se eu fizesse parte dela de alguma forma.

Escrevi por quase uma hora e depois li várias vezes o que havia escrito tentando pensar em mais alguma coisa que pudesse lembrar.

A noite continuava escura enquanto eu mantinha somente a luz do abajur da escrivaninha acesa. Não estava nem perto de amanhecer. Então fechei o caderno, o guardei no lugar e depois voltei para cama.

Os lençóis estavam gelados já que estava fora da cama há muito tempo, porém não ligava, frio era uma coisa da qual já estava acostumada. Deitei e puxei o cobertor até que cobrisse completamente meu corpo deixando apenas minha cabeça exposta.

Fiquei lá por um bom tempo olhando para o teto e quando pareceu entediante de mais peguei o celular de cima da mesa de cabeceira e coloquei os fones de ouvido.

Ouvi as músicas mais lentas e românticas em um volume bem baixo apenas para deixar o sono me encontrar novamente.

E aquilo foi suficiente para aqueles olhos cinza me encontrarem.

Eu ainda não estava sonhando com ele apenas me lembrava de sua linda cor.

Quem seria aquele garoto?

Por mais que lesse mil vezes meus cadernos nunca encontrava muito sobre ele, apenas a descrição do seu profundo olhar.

Enquanto sorria pensando no tal garoto pedi em silencio que se tivesse novos sonhos aquela noite que ele estivesse lá.

O sinal soou e eu abri meus olhos rapidamente.

Ninguém parecia notar que eu dormia e me sentia feliz por aquilo. Levantei com calma da mesa, minha sonolência era total.

– Não esqueça do trabalho da semana que vem querida.- disse uma mulher robusta e com cabelos grisalhos .

– Não esquecerei.

Disse enquanto os outros alunos saiam às pressas.

Estava usando um vestido xadrez e meus cabelos estavam soltos. Havia colocado uma mecha para trás da orelha quando levantei e peguei os livros sobre a mesa.

Andei a passos lentos até a porta da sala sem nem me dar o trabalho de olhar ao meu redor.

Meu subconsciente parecia estar bastante ciente da presença da minha professora de história na sala de aula apesar de meus olhos não a terem avistado inicialmente.

Quando virei para frente, tentando avistar novamente a porta de saída meus olhos avistaram os olhos cinzas me olhando com um sorriso encantador.

Ele vestia uma camiseta preta sem nenhuma estampa deixando seu peito um pouco amostra. A pele branca bem desenhada debaixo da roupa deixava amostra uma porção de tatuagens no braço esquerdo.

Suas calças jeans escuras eram justas, mas nada que pudesse descrever era comparado com aquele sorriso. O jeito que ele me olhava e sorria ao mesmo tempo fazia tudo perder o foco.

E por um segundo parecia aqueles filmes de noite das meninas quando a garota vê o cara e tudo parece parar.

Alguém chamou pelo nome dele e desesperadamente eu tentei ouvi-lo, mas não conseguia entender nada do que a garota que falava com ele queria dizer. Quando ele desviou o olhar de mim para garota eu pude ver um par de argolas pequenas e prateadas na orelha esquerda dele.

Ele era a definição de tudo que me chamava atenção e mesmo que tentasse parar de olhar para ele como uma boba não conseguia. Toda vez que ele olhava para a outra direção eu me sentia perdida e nada do que fizesse, além de trazer o olhar dele de volta para mim, me deixava tão em paz.

Então caminhei até ele e, como se tivesse todo o direito do mundo peguei sua mão. Meu toque o fez olhar para mim novamente esquecendo completamente do que estava fazendo. A garota que não consegui distinguir bem ficou emburrada e se foi junto com mais duas meninas.

Ele me olhou de perto e apertou os olhos. Cada vez mais conseguia prestar atenção na mistura de cores em seu olhar e jurava poder ficar naquele estado de transe toda vez que ele olhava para mim.

– O que você tem?

Ele perguntou.

– Aqueles sonhos outra vez.

Ele me puxou para si e me abraçou. Mesmo que estivéssemos parados perto daquela porta de saída não me importaria de ficar ali. Seu toque me fazia desejar as coisas mais intimas que uma garota pode guardar.

Como se cada segredo viesse à tona e ao mesmo tempo continuassem escondidos.

O toque dele sempre me surpreendia porque ele podia causar as melhores sensações e mais inusitadas por mais que ele me tocasse todas às vezes. Queria ele ao alcance das minhas mãos e nada nunca mudaria aquilo. Era sempre o que passava pela minha cabeça a cada sonho.

Toda vez que me via perto dele ficava enjoada com a minha própria postura. Jamais seria assim por um garoto. Parecendo uma garotinha apaixonada pelo coleguinha de escola, era no mínimo patética. Porém, perto dele tudo era irrelevante.

Ele deslizou a mão para o meu rosto depois de alisar meus cabelos. Olhou para mim com ternura e beijou meus lábios com delicadeza.

Ai sim meu mudo pareceu se fundir com outra dimensão que eu nem sabia existir. Ele nunca havia me beijado daquela forma, todas as vezes que sonhava com o seu beijo era mais carnal do que qualquer coisa. Mas, naquele momento ele tinha carinho e cuidado, como se qualquer movimento brusco fosse me partir em pedaços.

Ele tinha gosto de desejo e causava uma sensação parecida com a que as estrelas causavam no céu o tornando tão perfeito.

– Não fica assim. Foi só um sonho.

Comentou

– Eu sei, mas era a mesma garota e tinha muito fogo e você estava lá.

Ele arqueou uma sobrancelha.

– Eu?

– Sim. Você estava lá. Não deixava ela correr, estava segurando ela pelo braço enquanto o fogo queimava tudo.

Me encolhi de medo e baixei o rosto. Ele parecia tão confuso quanto eu quando ouviu seu nome em minha história. Como se soubesse muito mais do que eu e mesmo assim não quisesse me contar.

Ele ergueu meu rosto na sua direção e me olhou novamente.

– Não se preocupe com isso. Nada vai acontecer. Eu prometo a você.

Levei uma das mãos até o peito dele e alisei sua pele tão macia.

– Eu sei meu bem, mas cada vez mais sinto uma ligação com essa garota de cabelos castanhos. É como se ela fizesse parte da minha vida.

Ele beijou o topo da minha cabeça e depois me puxou para fora da porta.

– Vamos embora. Tenho ideias boas para te fazer esquecer esse sonho.

Ele me olhou com aquele olhar malicioso e debochado.

Eu segui junto a ele depois de revirar os olhos. Nós dois saímos de um prédio velho de mãos dadas. O lugar parecia ter muitos anos e suas paredes gastas já quase não tinham cor.

Porém era bastante aberto e arejado. O sol entrava por todos os lugares tornando o local ainda mais aquecido do que o normal.

Enquanto eu entrava no carro do garoto me perguntava como poderia um dia ter estado sem ele. Já não estava mais preocupada com o sonho. Só conseguia pensar nas coisas que ele faria comigo quando chegássemos à sua casa.

Como podia pensar daquela forma? Não sabia dizer, mas sabia que pensava.

Sentei no banco do carona e como se soubesse o que eu estava pensando ele olhou para mim e disse as palavras mais lindas que um garoto poderia dizer.

– Não sei o que faria se não tivesse você.

Eu o olhei com adoração e senti minhas bochechas corarem.

– Eu amo tanto você.

Ele se aproximou de mim mais uma vez segurando meu rosto com suas mãos.

Nossos beijos ardentes se tornaram mais quentes e mesmo que fosse importante parar não conseguia pensar em motivos para isso.

– Estamos no estacionamento da escola.

Comentei entre beijos.

Ele baixou a alça do meu vestido e beijou meu ombro.

– Mas todo mundo já foi embora.

Respondeu com a boca no meu ombro.

Encarei seu olhar de menino travesso.

– Guarde seus pensamentos sujos para quando chegarmos em casa.

Então prontamente ele me colocou no assento do passageiro ao seu lado e colocou a chave na ignição.

– Então amor fica quietinha aí que preciso chegar rápido em casa.

Eu cai na gargalhada assim que cruzamos o primeiro sinal vermelho e percebi que ele falava realmente sério.

Era um sonho, mas eu conseguia sentir todas as partes do meu corpo se direcionarem àquilo. Acreditarem naquela sensação.

E mais uma vez eu senti medo do que meus sonhos me faziam sentir por alguém perfeito inventado pela minha doce imaginação.