December 3, 2020

#5 - cidadã, não. Maria Clara!

“Quanta coisa, né?”
Já reparou o quanto essa pergunta é pesada? Quer dizer, ela pode ser pesada, né? Porque ela não é uma pergunta, de fato, ela é uma indagação reticente e é justamente a reticência nela que abre pra muita coisa vir.
Tão pequenininha, né? 3 palavras, uma vírgula e uma interrogação. Mas tão cheia de “não sei o quê”.
Por que eu podia tá numa conversa assim, num boteco ou no quintal de um amigo, e ai ele manda um “ah… quanta coisa, né?” e pronto! A partir daquele momento pode vir muita coisa. Eu posso falar da minha agenda e de quanta coisa tem nela. Quanta cobrança e o quanto as pessoas que trabalham comigo esperam que eu traga em retorno do contrato. Ele pode falar da vida dele, do quanto ele esperou pra essa noite chegar e a gente trocar uma ideia. Do quão triste o Brasil tá ultimamente ou do quanto de coisa que a gente ficou por fazer e não fez.
Por falar em distante, quanta distância né? Quanto tempo mais de quarentena tem pra gente? Quanta gente que eu não vejo que eu queria ver. Os amigos principalmente. Quanto, quando? Saudade da conversa da hora da conta. “amigão, traz a conta?” A gente pediu uma pizza “quanto ficou?” mas teve toda a cerveja que a gente tomou. “quanto ficou então?”.
Quando a gente vai se ver de novo? Quem é que sabe! O quanto demorar.
Quanta coisa, né?

Olá amigos, tudo bem? De acordo com o post it que a Maria Clara deixou aqui no microfone, esse é o quinto episódio do Podlex. Pra você ai que prefere um approach mais lúdico: Quantos dedos tem na sua mão? Essa é a quantidade de episódios do Podlex.

Nosso programa agora é um programa de mão cheia.

Desculpem, eu já não sei mais o que é piada boa ou ruim, faz tanto tempo que não pratico que estou meio enferrujado. Aliás, eu não sei se é cientificamente comprovado que é possível, mas eu acho que eu recuperei minha timidez. Eu fui gravar um vídeo tocando violão - Suspeito, do Arrigo Barnabé. E eu fiquei com vergonha só de imaginar que alguém poderia assistir.

Então eu já nem sei direito distinguir o bom do ruim. O shoyu do trigo, o que presta e o que não presta. A quarentena tem esse peso de que “agora que você não está saindo de casa você não tem desculpa pra não criar” e essa pressão acaba sufocando um pouco o senso estético e o bom senso do artista. E ai toda vez que se fala disso sempre tem "fela" que traz Shakespeare na conversa

"Ah Shakespeare escreveu Macbeth quando ficou trancado em casa por causa da peste negra de Londres.”

Todos os blogs e sites sobre cotidiano e criatividade acharam que iam tá abalando escrevendo um artigo sobre isso. Pode ir lá, dá um google aí, duvido que na primeira página não aparece um monte de blog com praticamente a mesma matéria.

O que ninguém fala do Shakespeare é que ele era rico. Não precisava trabalhar, não tinha que conciliar a rotina de artista com a rotina do seu cargo. Aí fica fácil né? Que preocupação que tem? Que prazo que tem? Não tem que parar no meio do texto porque lembrou de mandar uma mensagem pro fulano do RH sobre aquela consulta médica no mês passado.

O cara acordava, olhava a janela, pensava:

“É, ainda não está seguro.”

Então sentava, escrevia 8 páginas só de manhã… Não querendo desmerecer a obra do Shakespeare que parece que foi uma figura importante pra literatura inglesa. O que eu desmereço é esse papo meritocrático mesmo.


Esses dias no Youtube eu trombei com um negócio muito louco: Danger Music. Pra você que achava que já tinha visto de tudo, você não viu. Tem sempre a Danger Music.

Depois que eu entendi o que era Danger Music - porque eu tive que ver o vídeo já que tinha uma “fotinha do vídeo” - Eu me recuso à usar a expressão “thumbnail”! Já parou pra pensar o que é thumbnail em inglês: Unha do dedão. Alguém da área de criação do vocabulário de internet um dia teve a brilhante ideia de nomear um frame de apresentação de um vídeo numa playlist de "Unha do dedão" e ninguém, desde então, teve a coragem ou a criatividade de acabar com esse filme terror.

E o pior, esse cara foi muito sagaz na verdade, pensando aqui ele deve ser um cara muito sádico: Por que ele foi tão psicopata que ele escolheu uma palavra que mesmo encurtada quer dizer uma coisa bizarra.

“Olha a thumb do vídeo”

Você tá mandando a pessoa olhar o DEDÃO do vídeo! Isso não tem o menor cabimento. Como chamam aquelas pessoas com tara em pé? Esse cara deve ter essa tara, não é possível.

Eu estava falando de Danger Music né? Eu tive que assistir o vídeo porque a "fotinha" era muito chamativa. Depois que eu acabei de ver o vídeo e entendi o que era o conceito de Danger Music, na minha cabeça aquilo só era possível mesmo no Japão.

Você tá boiando, né? Vamos consultar a Wikipedia:

A Danger Music é uma forma experimental de música de vanguarda dos séculos 20 e 21 e arte performática. É baseado no conceito de que algumas peças de música (presta muito bem a atenção) podem ou prejudicam o ouvinte ou o artista, entendendo que a peça em questão pode ou não ser executada. Trabalhos como esse também são chamados de anti-música, porque parecem se rebelar contra o próprio conceito de música.

Não é incrível? O vídeo que eu vi comentava sobre a cena de Danger Music japonesa e pontuava sobre uma banda chamada Hanatarash, de um cara muito over que, ou gostava muito de música, ou não gostava nada. Esse cara uma vez derrubou a casa de show que ele estava tocando com uma escavadeira.

O cara derrubou a casa de show que ele estava tocando com uma escavadeira.

Esse foi show. Esse foi o setlist da gig toda. Eu fico imaginando o papel na beira do palco, na frente da caixa de retorno, escrito: Musica tal, musica tal, agradecimentos e ESCAVADEIRA.

Eu fui procurar mais a fundo, porque como você não procura mais a fundo sobre um cara que DERRUBOU A CASA DE SHOW QUE ELE TAVA TOCANDO COM UMA ESCAVADEIRA, e descobri que Danger Music vem lá de trás, de um cara chamado Dick Higgins: um poeta, compositor e artista plástico americano que propôs umas “partituras” de Danger Music que variavam de:

Danger Music Nº 15: Para a dança, trabalhe com ovos e manteiga por um tempo”

ou

Danger Music Nº41: Tire seu casaco e arregace as mangas.

ou ainda

Danger Music Nº9: Se voluntarie para ter sua espinha-dorsal removida.

Ou ainda o meu favorito:

Danger Music Nº17: Grite! Grite! Grite! Grite! Grite! Grite!

Eu fiquei a semana toda pensando nisso. Não consegui escutar nem metade de um disco do Hanatarash, porque é o tipo de ruído branco que meus ouvidos não gostam muito. Mas conceitualmente é muito interessante.

Ai um dia me apareceu a seguinte notícia:

“Tiago Iorc X Anavitória: entenda a treta e como acabou a amizade”.

Dai eu fiquei pensando: O mano derrubou uma casa de show com uma escavadeira e esses três mandando indireta por live e twitter.

Amigo, se você for dar barraco na internet, dá barraco mesmo. Pensa no entretenimento da população. Uma população trancada em casa, com medo, incerta do futuro. Qualquer coisa é entretenimento pra essa população, mas você também não precisa deixar de ter capricho com seu barraco.

Tem que ser nível “Programa do Ratinho” de baixaria.

Maria Clara: “Mas o Ratinho é um dos seres humanos mais desprezíveis que tem”.

Eu concordo, mas você conseguia estar zapeando e quando passava no sbt e estava tendo briga no Ratinho, você conseguia passar de canal? É disso que eu estou falando: Entretenimento. A galera tá na quarentena, assustada, precisa da sua catarse. Briga na internet é catarse.

É a hora que o cidadão comum vai expurgar todos os seus demônios!


Voltei a assistir Arquivo X.

Eu digo voltei porque Arquivo X é uma das minhas séries preferidas de todos os tempos. Eu adoro a série toda - Que se resume às 3 primeiras temporadas, porque depois disso foi só ladeira abaixo. Muitos acidentes de percurso, entre eles o mais grave de todos: Desmanche da dupla principal.

Toda graça do Arquivo X, além dos homenzinhos cinzas, dos sobretudos e daquele niilismo neo-noir característico dos anos 90, era a de ser uma história de amor sem amor. Você quer história de amor mais bem sucedida do que uma que não tem o amor pra atrapalhar?

Era a química perfeita: Um homem e uma mulher (gente, anos 90) com alguma consideração um pelo outro, desvendando teorias da conspiração malucas sem quase nem se tocar, mas cuidando um do outro e mantendo uma confiança mútua.

Por mim essa fórmula poderia durar pra sempre.

Só que não durou, né. E porque não?

Alguém na sala de roteiro teve a brilhante ideia de separar os dois. E como eles fizeram isso? Simples: Um filho dos dois. Legal né? Agora o casal que era perfeito, a perfeita história de amor sem amor, virou só mais um casal normal de história de amor com amor e filhos.

E ainda os roteiristas tentaram enganar a audiência botando uma outra dupla pra preencher o espaço. Ai foi o último prego no caixão.

Divaguei.

Eu voltei a assistir Arquivo X e é muito legal porque me traz aquela sensação de analógico típica dos anos 90. É um analógico diferente porque era aquele analógico que já flertava com o digital, mas de uma distância segura, sabe? De maneira nenhuma que eu quero pregar aqui contra o digital e contra o avanço. Não é nada disso. Mas esse cenário de pré-digital me agrada muito porque carrega em si uma quantidade ótima de nostalgia e eu como um cara que adora uma nostalgia, caio por qualquer sinal de uma.

Por exemplo, tem uma cena que o Mulder jura que o que ele e a Scully viram no céu à noite era um UFO que não era terráqueo.

“Ah mas como assim, UFO que não é terráqueo? UFO já não é terráqueo?”

Então, não.

A tradução de UFO é Objeto voador não identificado - o popular OVNI. Isso quer dizer que se eu jogar uma tigela pra cima, tipo um frisbee, e alguém olhar de longe e não conseguir identificar o que é, ou no máximo conseguir realizar que era um “troço voando no céu” isso já configuraria um UFO

Ai ele jura que viu um UFO ET e a Scully, cética, claro, jura que não. Então ele vai lá no campo que ele jurou ter visto isso pra tentar ver de novo o tal UFO e depois poder esfregar na cara da Scully que viu.

Mais uma característica de um relacionamento perfeito. Primeira temporada né?

Só que ai ele vai de dia ainda, não fala o horário exato, mas parece que é começo da tarde, tipo umas duas horas. Ele vai pra ver o negócio que ele tinha visto de noite. Só que ele vai de tarde. Ele fica lá andando no campo, mexe nuns matinho, olha pro céu. Muito mais tranquilo, sabe? A noção de tempo 90tista era outra. Não tinha essa coisa jovem de “Ah o negócio começa às 20, então eu vou sair de casa às 20:30”.

Você vê como que a galera nos 90 tinha esse desapego pelo tempo. “Ah eu quero ver o negócio à noite mas eu acho que já posso sair agora, né? Que horas são, umas 14hrs? Ah tá bom, eu espero um pouquinho lá mas tudo bem”.

Isso é uma coisa que hoje em dia jamais seria possível. Hoje em dia você sai de casa as 20:30 para um negócio que começa às 20, chega no lugar e ainda fica olhando o instagram, facebook no celular achando que tá demorando muito. Ai fica nervoso porque acaba trombando com alguma postagem que alguém curtiu, do tipo:

“Otaviano Costa é irmão do Celso Portiolli?”

Quem é Otaviano Costa?


(aqui tem um trecho do vídeo do "Cidadão, não")

Assim, eu não quero de jeito nenhum maldizer meu país. Ele tá passando por uma fase meio ruim agora, resultado de uma “fraquejada” das últimas eleições. Mas aqui no Brasil esse comportamento é mais corriqueiro do que se imagina. Eu acho que isso acontece por conta da herança que a gente acabou recebendo da nossa colonização. Sabe? Aquele papo lá de qual erro de português que mais te irrita?

O brasileiro, e aqui eu não quero justificar ou “passar pano” pra esse tipo de comportamento não. É só uma coisa que me ocorreu quando estava pensando sobre isso. O termo “brasileiro” vem do tempo colonial (mas olha só) e ele indicava profissão. É isso mesmo, já reparou que sufixo da nossa nacionalidade é o mesmo empregado em pedreiro, marceneiro, carpinteiro, campineiro, chicleteiro.

"Brasileiro" nos tempos coloniais eram aqueles “tiradores de pau-brasil”. Só que essa prática era ilegal e dava extradição de volta para Portugal. Em outras palavras: Na época do Brasil colônia, “brasileiro” era um termo pejorativo.

Curioso né? Ser brasileiro, desde 1500 é “ilegal”. Chega a ser até bonito isso: O fato de sermos brasileiros já é um ato de resistência, de certo modo.

Ah e isso não fui eu quem falei não! Eu não tirei isso do Instituto meu c*. Isso quem disse foi o filólogo Silveira Bueno, sabe? Aquele do dicionário que você usava na escola?

É interessante pensar nisso porque o “Você sabe com quem tá falando” é meio que um grito do brasileiro classe-média colonizado deslumbrado com o que não é Brasil, que busca de qualquer jeito ser “Brasileiro, mas pelo menos um pouco a mais”.

Aquele povo que é patriota mas comemora o 4th of July, por exemplo? É a tristeza de um povo escancarada ali na condescendência , na arrogância.

E eu digo tristeza não pra ter dó das pessoas que fazem isso, mas é a tristeza num nível mais amplo, filosófico por assim dizer. No sentido que você já começa errado por pensar que você não é qualquer um - Desculpa ai trazer as últimas notícias, meu consagrado, mas na fila do pão (ou perante questionamento do fiscal) você não é ninguém mesmo.

Você quer o quê? Acha mesmo que porque você projetou umas paradas num papel grande que parece um pergaminho moderno o mundo tem que se curvar e dobrar as regras por você? Quer dizer que você flutua quando quer porque você abre uma exceção na gravidade?

A metáfora foi longe demais. Mas pra fechar, que agora me ocorreu uma comparação boa aqui, pensa o seguinte: o Descartes morreu de pneumonia em 1650 enquanto trabalhava como professor, a convite da rainha. Isso mesmo, o cara que praticamente moldou a filosofia moderna era professor empregado da rainha.

Você não é ninguém só porque tem um Toyota, cara.