December 3, 2020

#7 - uma quizumba de fato

(Esse episódio começa com uma declamação de "Chovia na merda do teu coração" do Roberto Piva)

Olá amigos, tudo bem? Esse é o sétimo episódio do Podlex.

Eu tinha anotado aqui falar sobre medos e paranoias antigas tipo não dormir de guarda roupa aberto, cuidado pras crianças não prenderem o dedo na porta, não ter uma mesa de centro de vidro na sala de estar etc.

Mas ai "Paranoia" me fez lembrar do Roberto Piva e eu fiquei com vontade de bancar o Abu e declamar um poema dele aqui.

Esse que eu declamei chama "Chovia na merda do teu coração" e ele não é do livro "Paranoia" porque esse sempre esteve esgotado, não importa em qual sebo/livraria e tentava comprar. Esse poema é do Quizumba.

Trazer um pouco de cultura marginal pra essas bandas, né?


Eu tenho um negócio aqui anotado faz um tempo já.

O problema é que já faz tanto tempo que eu nem lembro o motivo de ter anotado esse tema. Não lembro o que foi que me chamou a atenção nele, nem porque achei ele interessante. De qualquer modo, vou tentar um exercício de improviso aqui e discorrer sobre o seguinte tema: "Luci liu fez sexo com um fantasma".

"Lucy Liu Once Claimed To Have Been Intimate With a Ghost"
"She was trying to take a nap on her futon when: “some sort of spirit came down from God knows where and made love to me.”
She explained: “It was sheer bliss. I felt everything. And then he floated away.”

Legal, eu ainda não lembro o que me causou interesse nessa história.

Na realidade, é um história até meio sem graça. Um daqueles momentos "E dai?". Ao mesmo tempo, dá pra traçar um paralelo com o que acontece agora com o isolamento.

Fazer sexo com fantasmas deve ser como a grande maioria da população está se sentindo. Me refiro a maioria porque temos os nossos maravilhosos minions inabaláveis e os trabalhadores que infelizmente não conseguem mesmo ficar de quarentena por conta de trabalho.

Mas eu acho que esse é o sentimento que a grande maioria da população deve estar sentindo agora de quarentena.

E eu nem estou me referindo tanto ao ato físico do sexo, mas ao que ele pode representar, ao que a gente pode construir de metáfora com isso. Se a gente partir do pressuposto que o sexo vem do desejo e que o desejo é o que tem que ser domado nessa quarentena e o que doma esse desejo é a imaginação e que fantasmas podem vir da imaginação... A metáfora tá pronta!

Mas pra além disso, tem as outras vontades, né?

Vontade de rever as pessoas, os amigos, família. De sair pra rua sem ter que usar máscara nenhuma, de voltar pra casa e só entrar, largar as chaves na mesa, a carteira em qualquer lugar. Pendurar a blusa atrás da porta, largar o tênis com a meia dentro mesmo ali do lado da cama. Não ter que lidar mais com as paranoias quando entra e sai de casa.

Tem a vontade de quando eventualmente acabar encontrando alguém no mercado, banco sei lá, poder conversar normalmente, poder cumprimentar, dar um abraço ou até um beijo dependendo da intimidade.

Porque, claro, de maneira bem direta e um pouco xula: Todo mundo quer fuder.

Ficar de quarentena tá sendo, pros solteiros, aquele momento de descoberta. De inventar novas formas de realizar o desejo, lidar com a vontade do toque, do cheiro, do gosto... Enfim. Ao mesmo tempo que pra quem tem algum parceiro, ou parceira, tá tendo que descobrir novas formas de ter um espaço.

Todas essas vontades que quando a vida real estava acontecendo a gente nem se dava conta que tinha tanta assim ou que elas fariam tanta falta: São os fantasmas.

E agora a gente tá transando com fantasmas, suprindo essas necessidades de maneira restrita e como podemos.

A grande questão aqui é: Porque diabos eu estava lendo sobre isso - ou como esse tipo de notícia entrou em contato comigo?


Eu quero falar sobre "Blasted". Você já conhece "Blasted"?

Outro dia um amigo meu me mandou uma peça dessa dramaturga inglesa Sarah Kane e eu li - Que é o que você faz numa situação social em que um amigo te manda um roteiro em pdf de uma peça escrita em 1995.

Mas eu acho que vale pra peças de qualquer ano.

Deixa eu falar um pouco da Sarah Kane: Ela foi uma escritora inglesa, estudante da universidade de Birmingham, normalmente dita a melhor dramaturga inglesa de sua geração. Ela sofria de depressão e suas peças se caracterizam por sua profundidade psicológica e suas imagens agressivas.

Eu decidi falar de "Blasted" aqui, talvez por alimentar um lado masoquista meu e querer ensaiar esse lado. Quero dizer, não me entenda mal: É uma puta peça! Como parece ser tudo o que a Sarah Kane escreveu. - O que não foi muito na verdade porque ela escreveu quatro peças apenas.

Blasted é a segunda peça. Ele é incrível em várias instâncias.

É incrível o quão físico, mas ao mesmo tempo o quão psicologicamente perturbador é. É incrível que essa peça tenha sido escrita e até performada em em 1995 - E eu digo isso pensando que se hoje em dia a sociedade é, em sua maioria, careta - Imagina naquela época.

É incrível como ela exige ao máximo da estrutura que um teatro pode oferecer.

O que se tem pra falar sobre "Blasted" (se é que é possível se ter só uma coisa pra comentar sobre qualquer obra de arte) é a violência.

Claro, ela é violenta nas imagens, mas acho válido pontuar que a "violência gráfica" por assim dizer, na peça começa só lá pra metade. Entretanto, ela é uma peça violenta desde o momento em que se abre a cortina. Ela é uma peça violenta na atmosfera, na cenografia, no figurino e, principalmente, no texto. É incrível como a Sarah Kane "esquarteja" a maioria das palavras no vocabulário dos seus personagens.

Tudo é dito de maneira "curta e grossa", o que só traz um tom mais hostil pra peça.

Basicamente, a peça se passa entre um dia: Um jornalista de linguajar chulo (e isso é muito importante), o Ian, aluga um quarto caro de hotel pra passar a noite com uma moça muito mais nova e emocionalmente frágil, a Cate.

Só por essa breve descrição já dá pra perceber onde está a violência que fiquei repetindo aqui.

A primeira cena, se não me falha a memória, uma das mais longas é onde o Ian tenta por todas as maneiras seduzir a Cate. E quando digo "de todas as maneiras" é literalmente isso.

Ele vai desde xavecos manjados até terrorismos psicológicos, tentativa de submissão sexual etc. Até que na manhã seguinte um soldado entra no quarto. É interessante notar aqui que a lógica da guerra que acontece como plano de fundo da peça toma conta de como as relações entre as personagens vai funcionar daqui pra frente.

Ler essa peça é tipo entender toda a filmografia do Gaspar Noé e começar a chamar ele de "poser".

Das duas vezes que eu acabei de ler a peça, eu me senti do mesmo jeito que me senti quando terminei pela primeira vez o "Inland Empire" do David Lynch. Elas tem essa semelhança de serem obras que vão sugar toda sua energia, que você não vai só assistir, mas vai responder de uma maneira física - vai cansar e vai ser um alívio quando acabar. E ela vai ficar pendurada ali na sua cabeça... Você vai ficar pensando e digerindo lentamente e tentando tirar mais de cada cena.

Realmente queria falar mais, mas estou com medo de estragar a experiência se falar mais. Então, faz um favor: Vai ler essa peça e depois volta aqui pra me contar se eu posso falar mais ou não.


Olha só, eu não sou geminiano. Mas quando o assunto é escolher o que assistir no Netflix, acho que todo mundo é um pouco.

Domingo a noite eu não estava conseguindo dormir, talvez porque Domingo é o dia mais triste que os Sumérios inventaram, mas pode ser porque eu assisti Synecdoche, New York e fiquei metido nesses assuntos existenciais.

Aliás, queria mandar um salve aqui pro Charlie Kauffman.

Eu adoro essa coisa no relacionamento que eu tenho com cinema que é: Sempre tem uma coisa que falta conhecer. Não que eu conheça tudo o que tenha pra se conhecer em relação à cinema, mas eu estou falando das coisas óbvias mesmo, sabe? Todo mundo que gosta de cinema já cansou de ver os filmes do Charlie Kauffman.

Mas pra mim não é bem assim, porque eu tenho esse relacionamento "sanfona" com cinema - que uma hora eu gosto muito, na outra eu estou completamente poucas ideia - então eu acabo perdendo muita coisa de legal e conhecendo só muito depois.

Depois que todo mundo tá cansado de saber, sabe? Quando você vai contar pro seu amigo cinéfilo que você finalmente viu um filme do Charlie Kauffman e ele faz aquela cara de bunda, tipo

"Pff. Sério? Só agora?"

De fato, o Kaufman foi um desses que eu perdi no meio do caminho. Mas foi até bom, porque ai eu pude conhecê-lo com esse filmão "I'm thinking of ending things".

Eu vi e fiquei maluco, quis ver toda a filmografia do cara. Só que eu decidi fazer isso num fim de semana só e talvez não tenha sido a melhor ideia. Porque na sexta eu assisti "Brilho Eterno de uma mente sem lembranças" e no domingo "Synecdoche, New York" já pensando em assistir "Quero ser John Malkovich" na sequência.

Inocência, né?

Eu digo que não foi boa ideia porque o resultado foi uma inquietação maior que eu. A cabeça a todo vapor, não parava de pensar e tal. Tanto que eu decidi assistir alguma coisa na Netflix pra ver se caia no sono.

É muito difícil decidir o que assistir na Netflix.

Quer dizer, é isso! Conseguimos! O capitalismo triunfou. Foi uma busca constante pra oferecer um produto que desse a maior liberdade para o consumidor

"Ah, olha só, temos muitas opções pra você não ter que ficar preso na programação que a emissora estipula pra você"

ou

"olha só, tá cansado de escutar o que a radio te oferece, quer conhecer coisa nova mas ter controle sobre os filtros? Que tal essa plataforma aqui? Ela tem milhares de opções pra você navegar e criar sua própria programação musical"

e agora, olha só, não conseguimos nem decidir o que assistir num momento de agonia existencial depois de um filme do Charlie Kauffman. É trocar a angustia existencial pela ansiedade da escolha.

E isso não sou eu quem tá falando não, quem disse foi um dos queridinhos da galera do marketing: o Barry Schwartz.

Basicamente, o que ele defende é que não é porque temos muitas opções de tudo que necessariamente nos sentimos melhores. Que um dos motivos das ansiedades modernas é aquela angustia de escolher um produto em frente uma prateleira com 15 opções de modelos diferentes daquele mixer que você cogitou comprar e todas essas opções prometem ser a melhor opção pra você. - Aliás, se eu fosse dono de alguma marca eu anunciaria minha meu produto como "definitivamente não somos o melhor, mas somos a solução mais prática" olha o atalho genial que isso ia fazer na decisão do consumidor ansioso e apressado.

Enfim, o que da pra entender sobre o que o Schwartz diz é que ter um bilhão de escolhas traz um desespero muito semelhante ao de quando não se tem nenhuma opção.

O mais maravilhoso de tudo isso é que ai, domingo a noite, querendo ver um troço pra ficar sussa, controle na mão, calor, várias thumbnails na minha frente, decidi dar um google nas melhores series de comédia do Netflix, pra ver se pulava algum nome ali que pareceria interessante.

E durante a busca eu cai numa página que estava mostrando apps que mostram o que tem de novo no netflix, mas não de um jeito catalogado "Aqui estão as novidades do mês", era tipo uns apps que fariam a escolha pra você!

E ai eu fiquei abismado por duas coisas:

  1. Contemplando um futuro onde, de fato, não conseguiremos fazer escolhas porque os algoritmos farão pra gente.
  2. Fui olhar na play store só pela curiosidade e vi que tinham vários apps desse tipo. Vários. Ou seja, muitas opções de um app que podem te ajudar numa situação de muitas opções.

No fim, eu fui ler um livro.