Filosofia
April 19, 2022

Ciência: O deus que falhou

"A modernidade falhou conosco".

SUMÁRIO:

Introdução
1. Teoria versus Técnica
2. A Existência de Múltiplos Modelos Teóricos
3. O Problema das Interpretações
4. Interpretar o Mundo ou Transformá-lo?
5. Profecias Auto-Realizadoras?
6. Convertendo em Premissas
7. Ciência & Magia
8. A Teoria em Si Mesma Nem Sempre Diz Algo sobre a Realidade
9. O Colapso Epistemológico da Credibilidade Científica E A Teoria das Quatro Causas
10. Metafísica versus Expulsão das Causas Finais
11. A Falácia de Occam
12. Três Hipótese Metafísicas
13. Aforismos de Metafísica & Super-Heróis
14. O Todo É Maior que A Soma das Partes
15. A Premissa Oculta das Ciências Cognitivas
16. O Mistério da Imaginação
17. A Questão da Psicologia
EPÍLOGO

INTRODUÇÃO

Faz algum tempo postei uma pesquisa no grupo de Ágora de Filosofia & Afins com a seguinte pergunta:

É possível fazer ciência de modo unicacente prático, sem teorias e definições?

80% dos votantes escolheu como resposta o "NÃO".

Posteriormente, fiz uma segunda pesquisa no mesmo grupo, dessa vez com a pergunta:

"Entender" um mecanismo é o mesmo que "explicá-lo"?

Curiosamente, a resposta também foi "NÃO", muito embora responder a esta pergunta com um "NÃO" exigiria, por coerência, a resposta "SIM" à primeira pergunta!

Sei que a amostragem de ambas as enquetes foi muito pequena, mas eu só queria sondar um sintoma do pensamento moderno/pós-moderno: o cientificismo. Claro que poderíamos conjecturar que, sendo ambas as enquetes anônimas, seria bem possível imaginar que não tenham sido as mesmas pessoas a responder ambas as enquetes. Porém, isto pouco importa para minha análise. Minha intenção é responder ao seguinte problema:

Se entender um mecanismo não é o mesmo que explicá-lo porque permanecemos tão presos às "explicações científicas" dos fenômenos e desprezamos outras formas de abordar o mesmo problema se o resultado referente ao que está sendo feito, seja na criação de uma máquina, no estudo de um remédio, na fabricação de um objeto, não necessariamente depende de explicar mas apenas entender o resultado esperado para resolver um dado problema com o material disponível?

1. TEORIA versus TÉCNICA

Quer ver um exemplo do problema? Atualmente faz-se muito deboche quanto aos chamado "terraplanistas" (pessoas que preferem um modelo plano de representação da Terra por acreditarem que a Terra não seja de fato esférica):

Existe um axioma na geometria que diz que "todas as linhas retas são curvas em direção a um horizonte infinito". Não sou Geômetra nem Matemático, então desculpem se eu disser alguma besteira mas, se o axioma for verdadeiro (ou ao menos útil de alguma forma pragmática) não faria diferença alguma o formato da Terra ser plano ou esférico na maior parte dos cenários como para a aviação e os satélites de GPS. Então... Quem se importa?! Ou melhor, que diferença faria?

🌎x🗺 "O mundo é uma esfirra de carne".

Outra crítica mais filosófica a respeito seria que nós basicamente acreditamos que a Terra seja esférica, e não plana, porque é isso que é repetido ad infinitum por professores, cientistas, astronautas, e outras figuras de autoridade sem que isso realmente tenha sido proposto a ser demonstrado a nós mesmos nem por nós mesmos.

Não me entendam mal! Eu não acredito que a Terra seja plana, mas acreditar em algo não demonstrado (ainda que possa ser demonstrado) é aceitar uma afirmação não testada como "petição de princípio" e não por ter sido convencido da veracidade da afirmação; portanto esta crença não seria de fato "científica" da perspectiva do homem comum, mas apenas das citadas figuras de autoridade que repetem esta informação (isso, caso a tenham posto à prova em múltiplos cenários). Quem nunca foi enganado por um amigo com uma história que até era coerente que atire a primeira pedra!

2. A EXISTÊNCIA DE MÚLTIPLOS MODELOS TEÓRICOS

Em outra ocasião, um colega da Ágora questionou o seguinte:

"Por exemplo, peguemos a teoria da gravitação universal. Todos os dados, as observações, cálculos matemáticos, levam à conclusão de que ela é real. Mas não poderíamos ter outras premissas, digamos assim, outros dados, outra visão de mundo que explicasse tal teoria? Não sei se tô sendo claro, mas o que quero dizer é que haveria infinitas possibilidades de se chegar a uma conclusão.
( https://t.me/FilosofiaEAfins/24848 )
O que os físicos sempre dizem é que 'todos os experimentos apontam pra essa ou aquela direção'.
( https://t.me/FilosofiaEAfins/24849 )
Eu não poderia, por exemplo, ter uma teoria que não seja a do Big Bang, em relação à qual igualmente os experimentos e a observação corroborassem?
( https://t.me/FilosofiaEAfins/24850 )
E se tudo o que temos são teorias válidas, mas não necessariamente verdadeiras, digamos assim?"
( https://t.me/FilosofiaEAfins/24853 )

3. O PROBLEMA DAS INTERPRETAÇÕES

Tomemos a Física Quântica como exemplo: em linhas gerais a "interpretação de Copenhage" e a "interpretação de Bohm" se contradizem, mas ambas são formas diferentes de se explicar um mesmo fenômeno. No entanto, o que de fato vale é como a matéria reage e como ela pode ser manipulada para fins tecnológicos, então... dane-se a teoria?!

Outro colega deu a seguinte resposta:

"Existe uma diferença entre formulação e interpretação dessas teorias. Em linhas gerais, formulações são os diferentes modos de expressar essas teorias. As interpretações podem ser entendidas como explicações do porquê essas diferentes formulações são consistentes com os resultados dos experimentos.
Os chamados "experimentos" mentais são apenas descrições de situações físicas DEDUZIDAS a partir dessas formulações. São só ferramentas que ajudam a entender melhor o que esperar de cada experimento.
É uma tolice se preocupar com essas "contradições" entre elas. O importante é saber se elas contradizem os experimentos.
( https://t.me/FilosofiaEAfins/24861 )

Entretanto, a resposta do colega não me pareceu satisfatória. Veja: uma coisa são descrições diferentes de um mesmo fenômeno, outra coisa é transformar a interpretação do fenômeno no fenômeno em si.

Ao que o colega respondeu:

"Eles discordam quanto às INTERPRETAÇÕES. As diferentes formulações são de conhecimento geral e são utilizadas de acordo com a conveniência para analisar um experimento.
Mesmo os que não concordam com a interpretação de Feynman, por exemplo, não têm problema nenhum em usar a técnica variacional dele para descrever os experimentos e prever os resultados destes. O importante é conseguir prever com precisão os resultados dos experimentos.
E esses resultados se traduzem numa imagem de ressonância magnética funcional ou na determinação da composição molecular de algum composto."
( https://t.me/FilosofiaEAfins/24866 )

Mas esse era exatamente o meu ponto: teorias úteis são utilizadas como ferramentas. Porém, se sabemos manipular o "processo de montagem" de um objeto destinando-o a um resultado, as teorias viram "aulas de física, química e biologia para fazer bolo", ou seja, uma vez dominada técnica de produção, as teorias se tornam INÚTEIS e DESCARTÁVEIS.

Há quem diga de outra forma. Por exemplo, o finado (amado por uns e odiado por outros) Olavo de Carvalho devia que "a técnica vem antes da teoria". Eu não saberia referenciar a frase porque, na verdade, foi trazida até a mim por um colega, mas vamos para o seguir nessa linha de raciocínio assim mesmo. Não sei se de fato a técnica vem antes da teoria, não tenho tanto conhecimento sobre história das grandes invenções. Mas o que sei é que de fato a teoria se torna supérflua quando a técnica é dominada. E de fato houve civilizações sem teoria mais excelentes em técnica, como os chineses.

4. INTERPRETAR O MUNDO OU TRANSFORMÁ-LO?

“Os filósofos até agora se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo.” Karl Marx
Fonte: https://guiadoestudante.abril.com.br/especiais/karl-marx

Em que pese toda e qualquer discordância com Karl Marx, sua afirmação se deu num contexto de distanciamento do idealismo alemão (que supunha já ter resolvido a maior parte das controvérsias filosóficas de sua época), talvez nos caiba direcionar pergunta similar para a ciência num cenário de possibilidades e imaginação...

Estaríamos hoje vivendo um paradigma similar? A Ciência até agora se limitou a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é... transformá-lo?

Fugindo um pouco do aspecto político da ciência (que é inegável dado o fato que cientistas são homens e todo homem tem um preço) a pesquisa científica é movida pelas mais diversas fontes de financiamentos. Isto é evidente e não está em aberto para discussão para o argumento que eu vou sugerir a seguir.

Quando comparamos as culturas Ocidentais e Orientais, em geral, é possível interpretá-las sob o ângulo dos arquétipos, sendo o arquétipo do Ocidente, a grosso modo, o "individualismo", e o arquétipo do Oriente, também grosso modo, o "coletivismo". Sobre isso, o ensaísta e médico vietnamita Minh Dung Nghiem escreveu:

"A Europa clássica favoreceu a lógica e o espírito crítico escolares ao honrar suas universidades e o saber.
(...)
(...)Com efeito, a língua chinesa (...) não procede por dedução. Ela não define conceitos; ela nunca define e deixa tudo em aberto, voluntariamente, para dar liberdade à imaginação e à emoção. (...) o discurso (...) na China (...) não se dirige à razão; não se busca convencer por meio de uma argumentação lógica como no discurso europeu; busca-se criar uma atitude sentimental que force a adotar uma conduta, a tomar um partido, a agir.
(...)
Essas duas maneiras distintas de utilização do cérebro resultam em (...) duas inteligências: uma teórica e outra prática. O europeu inventa conceitos, teorias. (...) o (...) asiático (...) faz as descobertas técnicas empíricas as mais complexas (aço, papel, litografia, papel-moeda, etc.), mas nenhuma descoberta teórica fundamental. Prova disso são os casos da China e do Japão."

Você pode conferir a citação completa na obra do autor, disponível no link:

Só leia se tiver estômago forte!

Baseado nisso, sem pegadinhas, apenas constatando a mesma observação do autor vietnamita, proponho a seguinte pergunta:

Por que não fazer ciência de modo unicamente prático, sem teorias e definições? 🤔💭

( https://t.me/FilosofiaEAfins/27930 )

5. PROFECIAS AUTO-REALIZADORAS?

De qualquer forma, os cálculos e medições que são feitos, algumas vezes, são influenciados pelo viés de interpretação teórico: você pode usar a teoria de alguém com quem não concorda porque precisa utilizar o método "x" pra chegar no resultado "y" dentro de uma área que você não compreende bem; mas um mesmo fenômeno sendo observado por mais de um ângulo ainda convergiria, em linhas gerais, para descrições similares e não é isso que vejo, por exemplo, na Física Teórica: duas pessoas falando de coisas contraditórias diante do mesmo fenômeno sendo que a própria medição do fenômeno já parte de um VIÉS TEÓRICO A PRIORI? A definição lógica para isso é "raciocínio circular": A teoria diz que a medição tem que dar resultado "y", portanto, eu uso os meios tecnológicos para alcançar a medição que dê resultado "y" e assim consegue-se usar esse conhecimento para alguma coisa prática. Isto sem falar da hipótese de que "a medição do fenômeno por si só já altera o fenômeno" pois trata-se de uma alegação tão metafísica quanto a alegação de Leibniz em seu conceito de "compossibilidade" de que "todas as coisas interferem sobre todas as coisas".

Curioso notar que isto aparece também em sistemas que trabalham com verdades inegáveis e axiomas como a Matemática, (por exemplo, temos vários tipos de Geometria, dependendo dos axiomas admitidos), não se trata de algo limitado ao caso da Física (já que, na Física de partículas, para fins práticos não convém utilizar os resultados da Física newtoniana). É uma questão de adequação do método em relação à natureza dos fenômenos. Ademais, um raciocínio corretamente decorrente das premissas mas que contenha uma premissa errada também pode ter uma conclusão inegável e nem por isso será verdadeiro.

6. CONVERTENDO EM PREMISSAS

Existe uma parcela da ciência que descreve a natureza enquanto uma outra parcela tenta definir a natureza a partir de pressupostos teóricos que não estão necessariamente presentes no mundo observável mas sim em nossa tentativa de compreensão do mesmo numa busca de encontrar universais pela indução, coisa que é logicamente impossível pela própria natureza do que seja um raciocínio indutivo: Não é possível extrair uma conclusão universal a partir de casos particulares. Ex.:

Premissa maior:

Não se deve tirar conclusões antes de averiguar todos os aspectos ou faltará um dado crítico na descrição, caindo assim numa "falácia de indução por analogia".

Premissa menor:

O método científico é predominantemente indutivo.

Conclusão:

Toda afirmação científica que não tenha esgotado o tema deve ser rejeitada.

🤷🏻‍♂Como lidar com isso?!

Neste exato momento não consigo pensar em nenhum tipo de conhecimento científico que não seja indutivo.

Alguém pode me dar algum exemplo de conhecimento científico na química, física ou biologia que não seja de origem indutiva?

( https://t.me/FilosofiaEAfins/28455 )

Meu problema com o pessoal da divulgação científica, por exemplo, é justamente porque não abordam o tema dessa maneira, mas como se os resultados de axiomas distintos/contraditórios fossem todos verdades CONCRETAS e simultâneas sobre um fenômeno, que "todas as dificuldades serão um dia explicadas pela ciência". Ou seja, não tratam as teorias científicas como sendo o que de fato são o que de fato são: "ferramentas conceituais provisórias" que usamos pra manipular o uso de um fenômeno material!

7. 👨‍🔬CIÊNCIA & MAGIA🧙‍♂

Usando um pouco de exagero para melhor explicar a questão: Não seria melhor evitar o problema teorético e encarar a ciência como magia? Afinal, se não sabemos como magia funciona isso pouco importa! ...Importa se ela de fato funciona ou não.

Me lembrei da frase do Arthur C. Clarke:

"Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia."

O problema da frase é que está implícito que tecnologia e magia são intercambiáveis. Ao definir ambas como intercambiáveis, se "uma tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia", magia também seria indistinguível de uma tecnologia suficientemente avançada. Gosto mais da definição de C.S. Lewis. Para Lewis:

"A diferença entre magia e ciência é apenas que a ciência funciona um pouco melhor."

8. A TEORIA EM SI MESMA NEM SEMPRE DIZ ALGO SOBRE A REALIDADE

O fato de uma teoria satisfazer modelos matemáticos, previsibilidade de fenômenos ou adequação a um paradigma teórico anterior não significa necessariamente que a teoria reflete a realidade, apenas que os argumentos são consistentes com a observação provisória do fenômeno (haja vista que novos fatos observados podem nos forçar a realizá-la); assim sendo, entenda: podem haver outras teorias que satisfaçam todas essas mesmíssimas condições a partir de outros pressupostos ou ainda outros paradigmas teóricos.

Minha posição a respeito do método científico pode também ser exemplificada pelo comentário de outro colega da Ágora:

"Podemos ilustrar essa falta de entendimento ontológico dos cientistas modernos da seguinte maneira: imagine-se como um engenheiro mecatrônico produzindo um robô, ele não faz idéia de como foi feito o processo de produção das inúmeras peças por ele utilizado, ele só as utiliza, além de não fazer idéia de que consequências sociais e naturais a produção desse robô irar trazer a sociedade. Tendo isso em mente, podemos perceber que a própria rapidez em que a ciência e a tecnologia são produzidas só é possível pela visão cega e limitada de quem a produz. Quanto mais cegos, mais rápida é a produção."
( https://t.me/FilosofiaEAfins/24905 )

9. O COLAPSO EPISTEMOLÓGICO DA CREDIBILIDADE CIENTÍFICA E A TEORIA DAS QUATRO CAUSAS

Há quem diga que a credibilidade científica está se desfazendo devido às "fake news" ou mesmo devido à necessidade humana de pertença ou até a busca do próprio "viés de confirmação" (especialmente agora que as tecnologias permitiram que ficássemos em contato com pessoas longínquas mas desconectados de quem está próximo), entretanto eu suspeito que o problema é mais severo do que isso e suas raízes sejam epistemológicas: a negação das causas finais e certos pressupostos ocultos de uma "metafísica materialista" tida como auto-evidente no meio científico.

Para entender melhor do que estou falando, vamos lembrar quais são as 4 causas que Aristóteles, o pai da lógica, divide em sua "Teoria das Quatro Causas". São elas:

  • Causa formal: o que dá forma ao objeto?
  • Causa material: de que o objeto é feito?
  • Causa eficiente: o que fez o objeto?
  • Causa final: para que serve o objeto?

As duas primeiras, causa material e causa formal, concentram-se em explicar a constituição dos seres. As duas últimas, causas eficiente e causa final, concentram-se em explicar o movimento, a mudança.

Cada uma delas será detalhada na sequência. A compreensão destes conceitos é uma necessidade para quem deseja aprender mais sobre quem foi Aristóteles e sobre a filosofia de São Tomás de Aquino, que resgatou grande parte do conteúdo aristotélico.

Causa formal

A causa formal é a responsável pela coisa ser o que é. Uma cadeira é reconhecida como cadeira por causa da forma de cadeira. Uma mesa é reconhecida como tal por causa de sua forma e assim com todas as coisas.

Algo é o que é por causa de sua forma e isto é o oposto da matéria.

Uma estátua é o exemplo tradicional para que isto seja bem compreendido. Grandes artistas olharam para blocos de mármore e viram, dentro do bloco, a forma que queriam esculpir.

Assim, com o cinzel e o martelo, eles tiraram os excessos do bloco, de modo que restasse em seu interior somente a forma que tinham visto.

As disposições que um escultor introduz no mármore são a causa da estátua, segundo a forma. Esta escultura se torna uma obra de arte e não um simples bloco por causa da forma pensada pelo artista. O mármore, por sua vez, é a causa material.

O exemplo explica bem, mas é apenas uma analogia. Para refletir de forma mais profunda, antes que a estátua existisse, o mármore já existia, reconhecido como tal. Ora, o mármore também possui sua forma; portanto, é mármore e não granito.

O escultor que usa a pedra para criar algo, na verdade, introduziu uma forma acidental à forma que já existia, dita substancial.

Forma substancial e forma acidental

Como visto acima, a forma acidental é aquela que é acrescentada a um sujeito já existente. A forma substancial, por sua vez, é aquela que já existe, sendo a primeira a se unir à matéria. Neste caso, não é uma forma que é acrescentada a um sujeito, mas a forma do próprio sujeito.

Na doutrina das quatro causas aristotélicas, todos os seres corpóreos da natureza (todos os objetos, todas as coisas, todos os entes, todos os seres vivos ou inanimados) são compostos de matéria e forma. Isto é chamado hilemorfismo.

Quando percebemos que os seres mudam, estamos vendo uma transformação. A matéria primeira é privada de sua forma substancial para outra e vice-versa. Um sujeito pode passar pela privação de uma forma acidental para outra e vice-versa.

Pode parecer confuso, mas são as formas que a “matéria-prima” vai ganhando. Um tronco pode se tornar uma cadeira, a cadeira um banco, o banco um artefato de decoração.

Causa material

Ao contrário da forma, a causa material é a própria matéria que constitui todos os seres corpóreos, todos os objetos, todas as coisas na natureza.

No exemplo da estátua, o mármore é a causa material de sua existência.

Como esta é apenas uma analogia, a continuação da reflexão exige um pouco mais: o próprio mármore é um sujeito que possui sua própria matéria.

O mármore, como qualquer pedra da qual se queira esculpir uma estátua, é uma composição de uma matéria primeira com uma forma substancial. Em seguida, recebe formas acidentais.

O que é a matéria primeira?

A matéria primeira é o que constitui todos os corpos e não possui qualquer forma. Portanto, é chamada de pura indeterminação, pois a forma não a determina.

A matéria pura, sem forma, ainda não é algo. Não é sujeito, nem objeto, nem coisa, nem ser, em suma, não é. É apenas é alguma coisa potencialmente, porque quando receber a forma será algo e, portanto, será identificada. A forma substancial será aquilo que a determinará.

Tal matéria não existe na natureza, pois tudo o que identificamos já possui forma, ou não identificaríamos. Para existir, é necessário que a matéria receba uma forma. Quando isto acontece, podemos conhecê-la pelos sentidos.

Qual é o papel dos 5 sentidos?

Com nossos cinco sentidos, aprendemos apenas as formas acidentais. Portanto, a visão, a audição, o olfato, o tato e o paladar não são capazes de perceber a matéria primeira dos corpos existentes.

A utilização de instrumentos de laboratório também não resolve, pois eles apenas amplificam os sentidos, conduzindo à percepção de novas formas acidentais.

A forma substancial dos corpos também não é aprendida pelos cinco sentidos ou pelos instrumentos.

No caso do mármore, a forma substancial é a que o trouxe ao ser, à existência. Percebemos apenas as formas acidentais que o fazem ter extensão, cor, temperatura e afins.

A inteligência pode aprender a forma substancial e a matéria primeira?

Seguindo o raciocínio da teoria das quatro causas aristotélicas, a resposta é não.

Em tese, a inteligência poderia, se fosse dirigida diretamente a seres existentes fora do homem. Mas, como ela está unida a um corpo e depende dos sentidos, só trabalha com as formas acidentais.

inteligência humana opera a partir da imaginação, com o conteúdo que foi fornecido pelos sentidos. A partir das formas acidentais, a inteligência pode deduzir indiretamente a existência da forma substancial e a matéria primeira.

A causa eficiente é o princípio do movimento e do repouso dos seres.

Qualquer mudança, alteração, é considerada movimento de acordo com a definição acima. Diz-se que há movimento sempre que a forma muda, adquirindo ou perdendo qualidades.

Isto ocorre de forma substancial para substancial e de forma acidental para acidental.

Um carro que se desloca movimentou-se porque deslocou-se de um lugar para outro. Uma pessoa que envelhece movimentou-se, neste sentido, porque perdeu certas formas e recebeu outras.

Para entender isto da melhor forma, é preciso acrescentar à explicação da teoria das quatro causas de Aristóteles a noção de ato e potência.

O que é ato e potência?

  • Estar em potência: aquilo que pode ser algo, mas que ainda não é;
  • Estar em ato: aquilo que de fato já é.

Um exemplo simples é o de uma semente. É de fato uma semente, mas potencialmente é uma árvore, porque pode sê-la.

A matéria, ou um sujeito privado de uma forma acidental qualquer, é potencialmente outra coisa. O bloco de mármore já é um bloco de mármore; uma pedra, é assim em ato. No entanto, pode ser uma estátua de mármore, embora ainda não a seja.

Neste caso, a pedra está em potência em relação à escultura. Quando for uma escultura de fato, pode-se dizer que ela mudou ou se moveu.

Todo movimento envolve passar algo em potência para algo em ato, isto é, mudança.

A matéria primeira, como é indeterminada e ainda pode receber uma forma, é pura potência. Ainda não é nada em ato, mas pode vir a ser. Já a forma, princípio que determina a matéria, também pode ser dita ato.

Todas as formas possuem operações próprias, por exemplo:

  • O fogo aquece;
  • O peso cai;
  • A inteligência aprende;
  • A luz ilumina.

A matéria pura ainda não possui operações próprias. Se tivesse, estaria determinada por uma forma e não seria mais pura. Compete à forma definir as operações próprias dos seres.

Este é o entendimento básico de ato e potência, mas por que é necessário para entender a causa eficiente como Aristóteles a concebe?

A insuficiência da causa material e formal

O movimento, ou mudança, não pode ser explicado apenas através da forma e da matéria. Somente estas duas causas não explicam as transformações que acontecem o tempo todo em nós e no mundo ao nosso redor.

O movimento não pode ser compreendido sem a causa eficiente.

Em todo movimento, algo passou de potência para ato. A potência da semente para ser árvore foi atualizada e, algum tempo depois, ela se tornou, de fato, árvore. A potência da madeira para ser cadeira foi atualizada e ela passou a ser, de fato, árvore.

A potência do mármore para ser estátua foi atualizada e ele realmente se tornou a estátua que antes não era.

O que fez com que a potência se tornasse ato? A causa eficiente. É uma causa transformadora.

A matéria é potência pura, por isso não se determina, pois se o fizesse teria alguma determinação e não seria matéria pura.

A determinação própria da forma é o que leva uma matéria a sair da potência e passar ao ato. Esta determinação deve ser externa à matéria que receberá a forma.

Para o movimento, uma forma externa àquilo que será movimentado precisa agir. Algo externo, que já existe, que já tem forma, que já apresenta uma operação, leva uma matéria indeterminada a ter uma forma, passando a ser algo em ato.

A pedra por si só não se torna uma estátua; precisa do artesão, símbolo análogo à causa eficiente.A semente por si só não se torna árvore sem a água e a terra em ato, para atualizar sua potência.

Portanto, segundo Aristóteles, a causa eficiente é responsável pelo movimento, por fazer algo passar da potência ao ato.

Causa final

Fazendo par com a causa eficiente, a causa final é o princípio do movimento e do repouso em vista da finalidade.

São Tomás, que comentou a obra de Aristóteles e a resgatou em sua teologia, explica a causa final:

“Ao perguntarmos por que alguém caminha, respondemos convenientemente ao dizer: para que ganhe saúde. E, assim respondendo, opinamos ter colocado a causa. De onde que é patente que o fim é causa”.

A existência da causa eficiente também exige a existência da causa final. Pensando em exemplos de causas eficientes inteligentes, a causa final é óbvia. Ora, todo agente inteligente age movido por uma vontade, que tende, por natureza, a um fim.

O escultor da estátua em mármore esculpe com uma finalidade em mente, para produzir uma estátua e agradar, pela beleza, a quem a ver. Neste sentido, a causa da estátua foi a vontade do escultor e sua vontade é a finalidade, o motivo da estátua, sua razão de ser.

Mesmo quando não há um agente inteligente, a causa final está lá. Por exemplo, quando uma flecha é arremessada contra um alvo, qual é sua causa final? O alvo. Embora ela não pense, um agente inteligente disparou-a com essa intenção.

Para São Tomás e Aristóteles, todos os agentes na natureza estão se movendo em direção a algum fim, mesmo que não o saibam.

Isto é evidente, porque, como já foi explicado, um agente externo é a causa eficiente da passagem da potência ao ato. Os agentes que fazem isso, operam de acordo com sua forma, que é sua operação própria.

A direção que as coisas tomam é a causa final. Vê-se isto na natureza. Todos os movimentos acontecem sempre, ou na maioria das vezes, do mesmo modo.

  • O fogo sempre aquece. Sua causa final é aquecer, é o que lhe é próprio;
  • A pedra sempre cai;
  • O botão da rosa sempre desabrocha;
  • O sol sempre ilumina.

São Tomás de Aquino comentando a física, diz o seguinte:

“Que sempre todo agente age em vista de um fim, aja ele pela natureza ou pelo intelecto”.
“As coisas que acontecem sempre ou frequentemente o são pela natureza ou pelo que é proposto pelo intelecto. Portanto, nas coisas que acontecem sempre ou frequentemente, estas coisas acontecem tendo em vista um fim”.

Mas por que alguns seres conhecem o fim enquanto outros não?

“É preciso que conheçam o fim aqueles agentes cujas ações não estão determinadas, mas que podem, ao contrário, dirigir-se a extremos opostos, como ocorre nos agentes voluntários; portanto, é necessário para estes que conheçam o fim, pelo qual determinam suas ações. Por outro lado, entre os agentes naturais, as ações já estão determinadas: não tem, portanto, necessidade de escolher entre as coisas que são meios de alcançar o fim.

Por esta razão, é possível que o agente natural tenda sem deliberação a um fim, caso em que tender a um fim não significa senão que ele tem inclinação natural a algo”.

Para Aristóteles, estas razões justificam a teoria das quatro causas, e não podem excluir nenhuma das que foram explicadas.

Fonte: https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/teoria-das-quatro-causas

Claro que, mediante a impossibilidade de excluir a sequência ordenada das 4 causas, buscou-se redundar ou relativizar a causa final como é possível ver no raciocínio duvidosos vídeo a seguir que, suspeito, Aristóteles não aprovaria...

O método mais antigo de aprendizagem da História | Canal Nerdologia

10. METAFÍSICA versus EXPULSÃO DAS CAUSAS FINAIS

Todo esse assunto derivado de Aristóteles é concernente ao que chamamos de "Metafísica":

📝 "Na tradição aristotélico-tomista, a metafísica é definida como o estudo do ser enquanto existente. A física é o estudo do ser enquanto físico. A matemática é o estudo do ser enquanto quantificável."
📖 METAFÍSICA. In: GEISLER, Norman L. Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã. Tradução: Lailah de Noronha - São Paulo: Editora Vida, 2002.

Eliminando as "causas finais" a ciência moderna entra num "solipsismo cientificista" em que aquilo que se afirma da matéria deve ser verdade porque é isso que a teoria dominante estabelece à priori, como um cachorro correndo atrás do próprio rabo, seguindo demonstrações que são difíceis de demonstrar; o que nos leva a um problema parecido com os cálculos realizados por mega inteligências artificiais: como saber se o cálculo está correto se nenhum ser humano tem capacidade de lidar com os mesmos volumes de dados que a máquina e nem vive tempo suficiente para checar se a resposta da máquina está de fato correta? Daí minha afirmação de que para as pessoas médias a maioria das informações científicas não é de fato "científica".

A Teologia Cristã eventualmente interpretou o intento iluminista de ter eliminado as causas finais do escopo da ciência justamente com a intenção de eliminar Deus da equação da vida valendo-se de artifícios como a "Navalha de Occam" (que, a propósito, é uma "falácia por petição de princípio", já que não é auto-evidente. Afinal, por que alguém deveria evitar digressões ontológicas causais por ausência de evidência se "ausência de evidência não é evidência de ausência"? Ex.: Acreditava-se que só existiam cisnes brancos até ser encontrada evidência contrária na Austrália.

( https://t.me/FilosofiaEAfins/23874 )

11. A FALÁCIA DE OCCAM

A "Navalha de Occam", assim como sua variante, a "Navalha de Hitchens" (que diz que "aquilo que é aceito sem evidências também pode ser rejeitado sem evidências"), é muito mais um "chute por indução" do que um princípio dedutivo ou ontológico como tentam fazer parecer. De fato, nos círculos neoateístas os religiosos são rebaixados como intelectualmente inferiores sendo apontados ciscos como o "Deus das lacunas", mas os mesmos neoateus não tiveram a capacidade de tirar primeiro a trave do olho da ciência!

12. TRÊS HIPÓTESES METAFÍSICAS

Entendendo o que é Metafísica podemos entender que a ciência moderna parte de alguns pressupostos metafísicos não-científicos que são premissas ocultas. Explico:

Antes da (suposta) descoberta do átomo (e coisas ainda menores) as hipóteses sobre "de que são feitas todas as coisas" eram 3:

1) Monismo - Todas as coisas são feitas de um mesmo algo;

2) Atomismo - As coisas diferem a partir do vazio/inexistência, os átomos não diferem na essência, mas são separados por espaços diferentes entre si;

3) Pluralismo - Existência e Essência não diferem em seres simples mas diferem em seres compostos;

...E a estas visões se chamava "Metafísica".

Comecemos pelo Atomismo que é mais fácil de entender para nós, (pós)modernos: O modelo atômico da Física é Metafísico, mas não correspondeu muito bem à sua proposta original já que átomos podem ser partidos e seus pedaços diferem em essência, mas ainda existem resquícios dessa visão de um "vazio" (vácuo) separando esses "pedaços de realidade" uns dos outros. A conclusão direta é: Tudo que existe é matéria e a matéria é o SER (a totalidade da realidade).

Por outro lado, o Monismo é a premissa central das religiões Orientais (com ou sem deuses) como no caso do Hinduísmo e do Budismo, para citar as mais conhecidas.Se todas as coisas são feitas de um mesmo algo, as conclusões diretas são: Deus está em tudo porque Deus é tudo, e tudo é Deus. Todas as contradições são ilusórias. Tudo que é, foi e será já é... e será novamente. Tudo renasce até se fundir com o SER eterno. Deus é eterno. O Universo é Deus. Tudo é um. Daí seguem as ideias de um Deus em várias emanações, vários deuses e nenhum Deus ao mesmo tempo, sem que isso seja um problema ou uma contradição. Mas repare que, em que pesem as semelhanças, o Monismo não identifica o SER com a Matéria e sim com a "Mente Divina", a soma de todas as consciências que é distinta da soma das partes.

Obs.: Uma matéria relacionada a como as "interpretações" quânticas foi parar no meio do misticismo monista pós-moderno pode ser lida aqui:

📲https://telegra.ph/Charlatanismo-Quântico-04-15

Há ainda o Pluralismo (uma forma de Realismo) de São Tomás de Aquino com a particularmente intrigante ideia de "substância simples": Deus é o único SER não composto de partes. Esta acaba sendo uma "terceira via" entre as duas visões anteriores, já que as coisas diferem em existência como tipos diferentes de ser, o que compreende o atomismo, mas não é contido pelo mesmo: As coisas que existem, vivas e não vivas, mudam; mas a substância simples, não. As coisas que mudam tem potência (potencial) de tornar-se em ato (mudar de forma, tamanho, estado físico, comportamento, etc.). Todavia, aquilo que é substância simples não muda, mas sustenta a realidade das coisas impermanentes.

( https://t.me/FilosofiaEAfins/28251 )

13. AFORISMOS DE METAFÍSICA & SUPER-HERÓIS

Para demonstrar a imponência deste quando comparamos alguns poucos "Aforismos de Metafísica":

1-A matéria pode existir sem a mente (Realismo).
2-A mente, ao que parece, precisa da matéria para existir (Aristotelismo).
3-As leis da Física se aplicam a corpos formados por muitas partes, ou seja, "substâncias compostas".
4-O Materialismo alega que a "matéria criou a mente".
5-A mente consegue imaginar coisas impossíveis para a matéria fazer (pois a matéria não é "substância simples").*
6-Um ser formado de "substância simples" não se subdivide em partes, logo também não estaria sujeito às leis da Física (Tomismo).
Conclusão: A matéria não pode ter criado a mente.

"-Sim, e daí?", alguém poderia perguntar. Neste ponto, basta você lembrar de qualquer revista em quadrinhos de super-heróis ou mesmo mitos antigos de personagens com poderes sobrehumanos nas religiões, literatura ou cinema: Os poderes mitológicos dos deuses ou dos super-heróis das revistas em quadrinhos só poderia ser explicado se estes fossem formados de "substância simples".

( https://t.me/FilosofiaEAfins/28417 )

Então o que explicaria o fato de podermos imaginar o Flash correndo à velocidade da luz em um momento e parando com uma leve lufada de vento no segundo sem que seus órgãos fossem arremessados para fora de seu corpo devido à inércia, ou que o Hulk e o Coisa sejam capazes de erguer prédios sem que o peso dos prédios colapsasse o chão em que pisam enterrando-os pelo excesso de peso concentrado num único ponto, ou a capacidade de Kittie Pryde de tornar todo o corpo intangível embora ossos e músculos tenham densidades diferentes, ou ainda a capacidade do Superman de fazer um filho de caráter duvidoso na Lois Lane sem tê-la partido em pedaços com sua super-força pélvica no processo?

Estes são só alguns dos exemplos de como os poderes dos super-heróis seriam impossíveis segundo uma física em que os corpos materiais são compostos de muitas e distintas partes mas que não acometeriam "corpos" (com o perdão da catacrese) que fossem feitos de uma única e mesma substância sem partes, tal qual um análogo boneco de borracha que seu filho não se preocupa em arremessar com força ou tentar esmagar pois sempre torna a ser o que era e não tem peças internas delicadas que pudessem se desfazer com o impacto.

14. O TODO É MAIOR QUE A SOMA DAS PARTES

E por falar no todo e suas partes, uma frase que uso de modo recorrente é:

"O todo é maior do que a soma das partes."

Entretanto, recentemente li um texto que destacava a dada frase da seguinte forma:

"Dizer que 'O todo é maior do que a simples soma das partes' ou que 'O todo é mais do que a soma das partes' pode levar a um entendimento equivocado. Podemos achar que UMA PEÇA a mais surge no mundo, ou que a natureza das coisas não é redutível aos seus componentes materiais (e o fator emergente pode parecer algo abstrato, como força ou inteligência)."
( http://telegra.ph/O-que-significa-O-todo-é-maior-do-que-a-soma-das-partes-não-é-o-que-você-pensa-provavelmente-03-10 )

O que questiono é o seguinte:

Acreditar que os fenômenos do mundo são sempre redutíveis aos seus elementos materiais já é por si só uma visão metafísica: um atomismo aceito como "petição de princípio".

Mas ainda que isso fosse demonstrado como auto-evidente (ou por outras vias), se o pensamento é de fato matéria, como se supõe, então por que "observar o todo e observar as partes são processos fenomenológicos diferentes"? Isso por si só não demonstra que existe uma "causa final" (no sentido aristotélico) em todas as coisas?

Por que tanta recusa (ou seria medo?) de que existam "causas finais"?

A que(m) serve a tentativa de reduzir tudo a explicações materialistas no pensamento contemporâneo?

15. A PREMISSA OCULTA DAS CIÊNCIAS COGNITIVAS

Existe uma premissa oculta nas ciências cognitivas, por exemplo, de que a mente seja, em grande parte ou mesmo completamente, material. Não tenho problemas com esta premissa, não faz sentido cobrar correspondência entre objetos e razão subjetiva porque a razão não é subjetiva de fato. Tudo que sabemos sobre a mente até aqui é que os processos mentais são análogos aos computacionais, que perder partes do cérebro faz perder partes da mente (ou das capacidades mentais), que a mente tal qual conhecemos precisa de um cérebro pra funcionar... ou de um hardware! Daí é natural derivar como conclusão que o pensamento corresponde, parcialmente, em algum grau elevado com a realidade sendo imediatamente física e mediada por elementos físicos.

(https://t.me/jeanpsicologia/872?single)

Se a mente não for ao menos parcialmente física o conhecimento do mundo físico seria impossível da mesma forma que não existe comunicação sem que se estabeleça a relação entre significado, significante e objeto. Eis aí o motivo de mesmo animais e inteligências artificiais conseguiram lidar com dados: há algum tipo de inteligência objetiva neles.

( https://t.me/FilosofiaEAfins/22606 )

Mas diversas vezes a ciência tenta responder às perguntas de "o quê" e "por que as coisas são como são" com afirmações e teorias sobre "como as coisas funcionam" como se todas fossem a mesma pergunta quando na verdade não são.

Entender essa diferença é fundamental e é facilmente notado num diálogo do filme Ex-Machina sobre Inteligências Artificiais:

Cena do filme "Ex-Machine".

Não tenho nenhum problema com reducionismos científicos contanto que se reconheça que são reducionismos localmente utilizados para interpretar fenômenos especificamente delimitados pela matéria e não o todo da realidade.

Já reparou que existe uma tendência em dar saltos místicos ou filosóficos a partir de teorias científicas?

Um trecho honesto de VICTOR J. STENGER traduzido sem tentar dar saltos místicos ou filosóficos a partir da Física de partículas, mas o argumento serve para qualquer neófito materialista que resolveu transformar a ciência em sua religião e modelo metafísico como alerta:

"A mecânica quântica, a peça central da física moderna, é mal-interpretada como se implicasse que a mente humana controla a realidade e que o universo é um todo conectado que não pode ser entendido pela mera redução às partes.
Entretanto, nenhum argumento ou indício decisivo requer que a mecânica quântica tenha uma papel central na consciência humana ou que forneça conexões holísticas instantâneas através do universo. A física moderna, incluindo a mecânica quântica, permanece completamente materialista e reducionista na medida em que é consistente com todas as observações científicas."
Fonte: https://telegra.ph/Charlatanismo-Quântico-04-15

16. O MISTÉRIO DA IMAGINAÇÃO

Mas, se a mente for de fato totalmente material, o que é a imaginação? Essa faculdade estranha que compõem coisas impossíveis e que deveriam ser impensáveis por serem composições de coisas experiencialmente contraditórias. Não deveríamos ser capazes de pensar coisas superlativas, impossíveis, sem referente, ilógicas e até falsas... mas pensamos! De fato, não vivemos sem elas. Desde o sentido da vida, o motivo pelo qual nem todo mundo se mata, até coisas tão breves e efêmeras como nosso entretenimento são povoadas deste estranho "motor de improbabilidades".

A quem diga que "a mente não é algo abstrato existente em uma terra de imaterialidade, que a mente está totalmente em um cérebro (ou HD), que o cérebro é afetado por um monte de coisas (de elementos físicos e químicos a condições biológicas, históricas e sociais)", resta explicar como diabos a imaginação pode existir compondo tantas coisas absurdas e (supostamente) impossíveis por quanto tempo se dê ao trabalho de usá-la.

Nas palavras de Steven Pinker:

"(...) raciocínio, inteligência, imaginação e criatividade são formas de processamento e informação, um processo físico bem compreendido."
Porém:
"(...) nada disso implica que o cérebro funciona como um computador digital, que a inteligência artificial um dia duplicará a mente humana ou que os computadores são conscientes no sentido de ter experiência subjetiva em primeira pessoa."
Fonte: https://telegra.ph/Como-a-mente-pode-ser-f%C3%ADsica--Teoria-Computacional-da-Mente-04-16

Só faltou a Pinker descrever o que ele chama de "imaginação", afinal como saber se máquinas podem imaginar coisas impossíveis assim como as pessoas?

17. A QUESTÃO DA PSICOLOGIA

Mario Bunge, físico e filósofo da ciência, em seu livro "Evaluating Philosophies", entre algumas coisas interessantes, mistura suas falas com a cota comum de besteiras que é natural que pessoas inteligentes falem:

“Desde o seu nascimento, a psicologia vem explicando os fatos mentais de várias maneiras. A explicação mais simples de tais fatos envolve apenas outros fatos mentais, como quando dizemos que ela fez isso porque acreditava que era do seu próprio interesse (…). Mas tal descrição não explica nada, porque não envolve qualquer mecanismo transformando crença em ação. De fato, explicar um fato é desvelar o mecanismo subjacente.
(...)
Como passar da descrição à explicação em psicologia? Tal transição pode ser realizada substituindo a mente imaterial pelo cérebro, porque isso é o órgão da mente, e porque os mecanismos existem apenas em sistemas materiais.”

O problema é que existem mecanismos imateriais: algoritmos são mecanismos imateriais, a matemática inteira é um mecanismo imaterial, softwares são mecanismos imateriais! "Algoritmos de compressão”, como diria Daniel Dennet.

A diferença entre descrição e explicação é largamente discutida em Filosofia.

Nas palavras de Thiago Azevedo, Psicólogo e Mestrando em Psicologia:

"Podemos discordar do Bunge e afirmar que as descrições no nível mental são explicações.
(...)
Não vejo problema em adotar a posição das múltiplas explicações. Neste caso, é possível dizer que falar do nível mental é uma explicação.
O problema é olhar exclusivamente para o nível mental, desconsiderando os outros níveis (biológicos, sociais, etc). Quando fazemos isso, temos muitos limites e as chances de erro aumentam."

Não preciso explicar como meu braço funciona para movê-lo nem saber como o motor do meu carro funciona para dirigí-lo; aliás, é possível consertá-lo sem um diploma universitário em Física da mesma forma como minha esposa não precisa de uma teoria das reações químicas para fazer um bolo.

Todos nós sabemos coisas num nível intuitivo funcional e algorítmico desde que tornamo-nos vivos. Até mesmo os animais detém esta forma de saber. Mas ao homem foi dado mais... foi dado imaginação, creio eu, como uma bússola da eternidade.

Aproveite essa reflexão e saia um pouca da internet para viver, fazer um pouco de ciência de verdade, sem teoria, na prática! Ao contrário do que pensam os cientistas modernos, desvendar mecanismos implica que eles existem, não implica explicá-los.

EPÍLOGO

E agora, um pouco de "atomismo lógico" à maneira de Wittgenstein.

Obs.: Usei hashtag (#) como símbolo matemático de "diferença" abaixo.

1.Essência # Potência # Forma

1.1-Potência é aquilo que, dadas as devidas condições, pode vir-a-ser.

1.2-Essência é a razão pela/para qual algo existe.

1.3-A Forma de algo contém Potência+Essência

2.Criado # Gerado

2.1-Uma máquina é criada e um filho é gerado.

2.2-Uma máquina é uma ferramenta.

2.3-Tanto um ser vivo quanto uma máquina têm potência e essência.

2.4-O ser humano descobre sua essência.

2.5-Um animal e uma ferramenta podem ter sua potência danificada, mas não sua essência.

2.6-O ser humano pode negar tanto sua potência quanto sua essência.

2.7-Ao negar a potência, a essência permanece inalterada.

2.8-Ao negar a essência, no entanto, ele se deforma.

2.9-A forma de algo é uma abstração da essência.

3.Razão # Verdade

3.1-Verdade é aquilo que é, que há e que existe de fato.

3.2-Aquilo que é, que há e que existe de fato tem referente.

3.3-Aquilo que tem referente pode ser suficientemente, mas não totalmente, definido pela razão.

3.4-Razão é a capacidade de usar jogos simbólicos para definir e interpretar coisas.

4.Definir # Descrever

4.1-Na descrição não cabe interpretação. Na definição, sim.

4.2-Jogos simbólicos são abstrações.

4.3-Linguagem é uma abstração usando palavras.

4.4-Linguagem é um tipo de Jogo simbólico.

5.Pensamento # Abstração # Consciência

5.1-Pensamento => estímulo (interno ou externo)+percepção=resposta.

5.2-Propriocepção = Pensamento a respeito dos estados internos do próprio corpo.

5.3-Abstração = Linguagem = Jogos simbólicos.

5.4-Consciência = Propriocepção + Pensamento + Abstração.

5.5-A Consciência não é o "Eu".

5.6-O "Eu" não precisa ser racional nem consciente. Pode ser em si ou ser senciente.

5.7-O que é em si é substância simples: não é composto de partes, não é limitado pelo tempo, espaço ou matéria, ele simplesmente é.

5.8-O que é senciente é predominantemente Não-Racional.

5.9-Eu = Percepção transcendente da continuidade do ser em si mesmo no tempo.

6.Racional # Irracional # Não-Racional

6.1-Racional é aquilo que opera a partir de algum jogo simbólico.

6.2-Não-Racional é tudo aquilo que não opera pelo jogo simbólico.

6.3-O jogo simbólico não é a Lógica.

6.4-Lógica é uma "matemática" operada obedecendo aos Primeiros Princípios.

6.5-A Lógica expõe verdades.

6.6-Nem toda verdade é lógica, alguma verdade é Não-Racional, mas nenhuma verdade é irracional.

6.7-Irracional é tudo aquilo que nega o jogo simbólico.

6.8-Razão # Verdade: É possível usar a razão para dizer algo falso.

6.9-É impossível dizer uma mentira completa porque a mentira extrai sua forma da verdade.

6.10-Descrever algo falso ou derivar conclusões falsas apenas não é mentir.

6.11-Falso é todo jogo simbólico sem referente.

6.12-Insistir na existência de um ente ou fenômeno falsos é ser irracional.

6.13-Extrair verdade daquilo que é falso é ser Não-Racional.

6.14-Mentir = Enganar através do jogo simbólico.

6.15-Mentir envolve usar o jogo simbólico de forma irracional.

6.16-A mentira é irracional, mas apenas seres racionais podem mentir.

6.17-O pensamento não é racional a priori.

6.18-Animais pensam.

6.19-Mistério é tudo aquilo que não pode ser claramente definido por jogos simbólicos.

7.Pensamento Racional # Pensamento Irracional # Não-Racional

7.1-Pensamento racional = Dedução, Abstração simbólica com referente, Indução.

7.2-Pensamento Irracional = Negação da racionalidade.

7.3-Pensamento Não-Racional = Epifania, intuição.