Kierkegaard e "O Navio de Teseu"
Existe um enigma de Filosofia conhecido como "O Navio de Teseu" que questiona: certo navio, reparado tantas e tantas vezes por seu dono (Teseu) que termina por não ter mais NENHUMA das peças que o compunha originalmente seria ainda o MESMO navio?
Por mais que não fosse sua intenção, me parece que Kierkegaard RESPONDEU a este enigma de maneira satisfatória.
Kierkegaard foi um filósofo dinamarquês que viveu entre 1813 e 1855 e a obra em que surge o argumento que selecionei para usar como resposta ao enigma do "Navio de Teseu" se chama "O Conceito de Angústia".
Pelo título já se nota que a proposta nem era de fato resolver o tal enigma, então, vamos analisar o argumento:
"Adão e Eva eram apenas uma repetição numérica. Neste sentido, ainda que houvesse milhares de Adões eles não significariam mais que um único. Isso no que diz respeito à descendência da humanidade a partir de um só casal. (...) Logo que se estabelece a relação da geração, nenhum homem é uma superfluidade, pois cada indivíduo é ele próprio e a humanidade".
Há de se sinalizar aqui que o entendimento de Kierkegaard a respeito de Adão e Eva sendo, antes da queda, seria de uma unidade perfeita, porém meramente exterior, com a entrada do pecado surgem, ao mesmo tempo, a Sexualidade, a História e a Individualidade. Um exemplo do que o autor fala está quando compara a historicidade de Adão e Eva (sendo mito ou literal, pouco importa) com a questão da não-historicidade, por exemplo, dos anjos na eternidade:
"A pecaminosidade não é então a sensualidade, de jeito nenhum; mas, sem o pecado, não há sexualidade e sem sexualidade, nenhuma história. Um espírito perfeito não tem nem a primeira nem a segunda; razão pela qual, aliás, também a diferença sexual fica abolida na ressurreição, e por isso anjo nenhum tem história. Mesmo se o arcanjo Miguel tivesse registrado todas as missões às quais foi enviado, e que tinha desempenhado, nem assim tais anotações constituiriam a sua história. Só a partir do sexual a síntese é posta como contradição, porém igualmente - como em qualquer contradição - como tarefa, cuja história começa no mesmo momento. Esta é a realidade que é precedida pela possibilidade da liberdade."
Vamos com calma aqui: para entender COMO e PORQUE este trecho teológico de Kierkegaard responde ao enigma do "Navio de Teseu" devemos nos familiarizar rapidamente com alguns conceitos prévios que Kierkegaard tinha em mãos e que atravessam seu texto:
- Teoria das formas (de Aristóteles);
- Historicidade = Mortalidade (a urgência da morte);
- Nem os sentidos são a fonte dos desejos nem os desejos são em si pecaminosos;
- O "ego" é vazio (de Pascal)
- O pecado gera a morte e o pecado original gera morte para TODOS
Vamos nos deter brevemente sobre cada um destes conceitos... Mas primeiro, talvez um trecho de outro autor, C. S. Lewis, nos dê uma bússola para entender pra que direção irá o argumento de Kierkegaard quando trata Adão e Eva, o primeiro casal do mito bíblico, como uma "repetição":
"(...) se chicoteássemos a criatura duas vezes, haveria, de fato, duas dores; todavia, não haveria um eu coordenador capaz de reconhecer: 'senti duas dores'. Nem mesmo na dor única haveria um eu para dizer: 'Sinto dor'. Se conseguisse distinguir a si mesma da sensação - distinguir o leito do rio - o suficiente para dizer "Sinto dor", a criatura também seria capaz de associar as duas sensações como uma experiência sua".
O trecho de C. S. Lewis tratava de um ensaio teológico sobre a natureza do sofrimento animal.
Se Lewis estabelece primeiramente que "dor não se soma" mas que o ego a liga pela passagem do tempo, o ego une as experiências mas o mesmo ego é aquilo que se separa do mundo. Em outras palavras: só existe ego no ser humano porque só o ser humano carrega o pecado hereditário (ou pecado original, como queiram).
Vamos aos conceitos listados anteriormente já que eles delimitarão a resposta ao enigma do "Barco de Teseu"...
1 - A Teoria das formas, de Aristóteles, como uma variante da "Teoria das Ideias, de Platão, apresenta as ideias não como o aspecto imutável e imaterial de algo (como no "mundo das ideias", de Platão), mas enquanto a forma reconhecível de um corpo, indissociada do mesmo mas também abstrata e identificável. A implicação da "teoria das formas" é que a forma humana, embora tenha identidade por cada ser existir como "uno", só se diferenciam por ponto de vista. Em termos de "ideias" a forma do ser humano (em suas variações acidentais) é UMA SÓ. Ou seja, os seres humanos (ao menos antes do pecado no argumento de Kierkegaard) são, em certo sentido, repetições de uma única coisa que generalizamos sob o termo de "humanidade". Ao mesmo tempo que é concretamente menos real que um indivíduo, o abarca sendo maior que todos os indivíduos. A visão original de Kierkegaard sobre a "teoria das formas" é trazer à tona que existe uma identidade compartilhada entre os indivíduos na forma do "pecado hereditário" (pecado original) e esta IDENTIDADE é tão real no conceito quanto no ente.
2 - Historicidade na perspectiva de Kierkegaard, é entendida como o sentido/direção da história presente no senso de urgência da reprodução e da morte. Afinal, se todos vivêssemos para sempre... como a pressa seria possível? Tudo poderia ser deixado pra amanhã: projetos, amores, grandeza... TUDO!
Se a morte entrou no mundo pelo pecado, é também o pecado que nos dá um senso de urgência sobre como viver já que nosso tempo não é eterno. Em resumo: na eternidade, sem pecado, não há história.
3 - Nem os sentidos são a fonte dos desejos nem os desejos são pecaminosos por si só diz respeito à contingência da existência humana e como nossos sentidos funcionam diante da beleza. Deus parece ter deixado em nós uma noção relativamente clara do belo para que gozássemos disto. O pecado só adentra à experiência estética dos sentidos quando o desejo, que nos é natural e dado por Deus, salta da primeira qualidade, o "gozo", para o pecado pela concupiscência. Se isto é vero (e, nas sagradas escrituras cristãs, de fato é cf. Tiago 1: 14-15 ; 1 Coríntios 6:13; Colossenses 3:5, por exemplo), o pecado surge através de um pecado (o que, embora parecendo raciocínio cíclico não o é já que o pecado original difere do pecado individual por, nas palavras do próprio Kierkegaard: "cada indivíduo é ele mesmo e (TODO) o gênero humano".
Obs.: O "todo" entre parênteses é ênfase minha ao original de Kierkegaard que não contém esta pequena transposição.
4 - "O ego é vazio" é, em verdade, um conceito de Pascal antes que o suponhamos em Kierkegaard... Mas supô-lo também em Kierkegaard cai como uma luva, já que "a realidade que é precedida pela possibilidade de liberdade através do PECADO esvazia o homem da presença de Deus. O que nos leva ao próximo ponto...
5 - O pecado gera a morte e o pecado original gera morte para TODOS (cf. Romanos 3:23; 5:12).
A visão teológica de Kierkegaard lhe serve de guia tanto para entender a natureza da psique sob a forma do mal presente em nós pela ausência de Deus e, ao mesmo tempo concilia uma grande tradição filosófica que entende que uma forma enquanto essência é uma repetição que engloba todos os acidentes possíveis (para usar um linguajar aristotélico).
...Mas, como então manter a individualidade se ela resulta em parte da existência e em outra parte do pecado?
A ideia Oriental da "dissolução da identidade no uno" poderia, numa transposição cristã, ser de fato não a "anulação da identidade" propriamente dita, mas da individualidade, demolindo a barreira de separação que oculta de nós a essência de um ao outro (um problema descrito também, por exemplo, por Schopenhauer no "Dilema do Ouriço"). A "dissolução em Deus" ou, na visão cristã, a "união com Deus" (cf. 1 Coríntios 15:28) PRESERVA a identidade enquanto REVELA a essência (portanto, a individualidade de perceber o ser enquanto "separado" é abolida!). E o que é a individualidade senão uma perspectiva, um ponto de vista isolado do todo?
Conclusão:
A solução encontrada em Kierkegaard para o enigma do "Navio de Teseu" é esta: "objetos não têm história, nem identidade" - o que torna o "Navio de Teseu" um navio é seu uso por parte de Teseu, sua caracterização vem de Teseu (uma pessoa) e não do navio em si, seja em sua causa material ou em seu forma. Troque todas as peças e o navio ainda será o mesmo, mude sua forma e ainda será o mesmo. Estendendo este raciocínio para a humanidade, se fosse possível copiar o corpo e memórias de um ser humano, ambos seriam o MESMO assim como um só Deus existe em 3 pessoas. A materialização acidental dos universais se dá através da repetição.
Um só e mesmo é todo o desfecho: que TODA a História enfim se torne a HISTÓRIA DE TODOS. Talvez 1+1 não seja igual a 2 afinal de contas...
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A Metafísica. Tradução de Giovanni Reale. São Paulo: Editora Loyola, 2002.
DUPRÉ, Ben. 50 ideias de Filosofia que Você Precisa Conhecer. São Paulo: Editora Sextante, 2013.
LEWIS, C. S. Deus no Banco dos Réus. São Paulo: Editora Thomas Nelson, 2018.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário / Søren Aabye Kierkegaard; tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls. – Petrópolis, RJ: Vozes ; 2017. (Vozes de Bolso).
PASCAL, Blaise. Pensamentos (1669). Tradução Maria Ermantina Galvão. Editora Martin Claret, 2000.