Meditações sobre O Sentido da Vida
"Esta não é mais uma carta de amor, são pensamentos soltos traduzidos em palavras pra que você possa entender o que eu também não entendo..." (Jota Quest, "O Que Eu Também Não Entendo")
📝 Índice:
1-O que é a vida?
2-De onde viemos?
3-Onde estamos?
4-Para onde vamos?
5-O Que É A MORTE?
6-O Que É Um Indivíduo?
7-Referências
1-O que é a vida?
Muitas coisas na Filosofia e Teologia acabam sendo melhor definidas pelo que "não-são", ao invés de serem positivamente definidas pelo que são. Sendo a vida algo que só pode ser experienciado por alguém vivo, e sendo difícil a descrição do fenômeno, opto neste texto por encurtar o caminho definindo a vida pelo que ela não é: "a vida não é a morte, a vida enquanto fenômeno antagoniza a morte... e a morte é o fim ou cessação da vida."
2-De onde viemos?
De onde viemos é uma pergunta de cosmovisão. Fazer essa pergunta pressupõe não só a aceitação de que existe ordem no Universo, mas também que essa ordem é CAUSAL. Portanto, não apelo aqui para o mistério, nem para a ciência, mas para a ontologia: nós "viemos-a-ser" através do SER. Se há algo ao invés do nada e se há ORDEM (nalguma medida) em meio ao Caos, é preciso admitir que afirmar que "inteligência possa vir de não-inteligência" é romper com o "princípio da causalidade" e, por tabela, negar o pensamento. Por conseguinte, o Ser não apenas É, mas SABE - o que nos obriga necessariamente ou a aceitar ou nos rebelar contra nossa (chame-a como quiser, ainda assim será uma...) causa inteligente.
3-Onde estamos?
Engenheiros do Hawaii responderia a esta pergunta com um "Estamos vivos, sem motivos... Que motivos temos pra estar?" e eu gostaria de dizer que "há alguma verdade aí". Não é que a vida não tenha valor objetivo, mas o sentido ou "direção" da vida precisa ser descoberto por cada indivíduo já que a sina dos seres conscientes é, como diria Schopenhauer, "um pêndulo" entre a dor e o tédio. Kierkegaard em "O Conceito de Angústia" defende que o homem vive a angústia justamente por sua consciência "despertar" ao "perder a inocência" (e inocência é ignorância):
"Na inocência, o ser humano não está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade. O espírito está sonhando no homem. (...)
Neste estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há algo de diferente que não é discórdia[103] e luta; pois não há nada contra o que lutar. Mas o que há, então? Nada. Mas nada, que efeito tem?[104] Faz nascer angústia. Este é o segredo profundo da inocência, que ela ao mesmo tempo é angústia. Sonhando, o espírito projeta sua própria realidade efetiva, mas esta realidade nada é, mas este nada a inocência vê continuamente fora dela.
A angústia é uma qualificação do espírito que sonha, e pertence como tal à Psicologia."
Não sendo onisciente, O homem é "devir", um "vir-a-ser", e o que deve vir a ser é uma escolha sobre a qual tateamos, e ainda assim, não nos é passível de fuga.
4-Para onde vamos?
Esta também é uma pergunta de cosmovisão. Talvez a mais complexa por incluir respostas tanto empíricas quanto lógicas admitindo ainda especulações metafísicas mas, como já disse Wittgenstein: "Não se experiencia a morte". Assim sendo: "o estado do homem na morte" é "MORTO". "O estado do homem após a morte" é suspeitado pela metafísica e revelado pela religião, mas a revelação verdadeira só atenderia aos critérios do SER se alguém uma vez morto, pudesse sair da morte onisciente e para não mais voltar a morrer, tendo condições de nos dar mais do que uma simples explicação, mas um DESTINO. Fujo das especulações, por hora, apontando aquilo que nenhum de nós se atreveria a negar (em sã consciência): vamos TODOS para a morte. Assim como os vivos se alimentam dos mortos, a morte se alimenta dos vivos.
"O Sheol e a Destruição são insaciáveis, como insaciáveis são os olhos do homem. (Provérbios 27:20)"
Sendo assim, penso que o sentido da vida seja "aprender a morrer sua própria morte", se esvaziar cumprindo o papel que recebemos no teatro da vida de modo a sair de cena com dignidade. "Fazer uma escolha e arcar com as consequências dessa decisão". Em outras palavras: dar forma à própria alma (self).
A vida dura pouco, e é nesse pouco de tempo que devemos nos tornar aquilo que de fato somos, assim como a semente deve se tornar a árvore. E isso já é demasiado cheio de empecilhos que nos podam para adicionarmos a isso vivermos como mentirosos numa vida que não é a nossa.
Gastar mais tempo sendo o que de fato se é (e não o que se pensa ser, queria ser, se sente como se fossem nem o que te dizem pra ser) é difícil porque é um processo que precisa acontecer através dos nossos relacionamentos humanos fundamentais de afeição, amizade, paixão e caridade.
O grande problema da questão do sentido enquanto "direção" da vida é que, se Epicteto estava certo ao dizer que...
"Somos como atores em uma peça de teatro. A vontade divina designou um papel para cada um de nós sem nos consultar. Alguns atuarão em peças curtas, outros em longas. Podemos ser chamados a desempenhar o papel de uma pessoa pobre, de um deficiente físico, de uma eminente celebridade, de um líder político ou de um simples cidadão comum. Apesar de não estar sob nosso controle determinar o tipo de papel que nos é atribuído, cabe-nos representar a nossa parte da melhor maneira possível e procurar não reclamar dela. Você se torna aquilo que você pensa. (Epicteto, "A Arte de Viver")
...Alguns de nós também interpretam VILÕES.
Lembro-me de ter tido um terrível impacto ao perceber o processo gradual de transformação que levou Walter White a se tornar em Heisenberg no seriado "Breaking Bad", especialmente após a cena em que ele reluta, em pleno Pollos Hermanos, em aceitar que era o vilão de sua própria história.
Do mesmo modo, parece que Oppenheimer, ao fazer sua famosa citação "tornei-me a morte, o destruidor de mundos , que vem de um trecho do Bhagavad Gita, estava em realidade (conscientemente ou não) reconhecendo que havia sido "escolhido por Deus" para se tornar o "destruidor de mundos", aquele que traria ao mundo o conhecimento atômico e toda destruição e morte causados pela criação da bomba nuclear.
O trecho do Bhagavad Gita citado por Oppenheimer em seu contexto é ainda mais impactante:
"Lorde Krishna disse: Eu sou o tempo, eu sou a morte, eu sou o destruidor de mundos. Eu vim para aniquilar todos os exércitos deste campo de batalha. De todos os grandes generais e guerreiros que pode ver, nenhum me escapará. Somente você irá sobreviver, ó príncipe. (11.32)
Assim sendo, levanta e se atira ao combate, pois você será o meu instrumento e o meu executor. Toma coragem, ó Arjuna, e conquista seus inimigos, pois eles já estão condenados pela minha presença ao seu lado. (11.33)"
Esse trecho faz parte do diálogo entre Krishna (uma encarnação de Vishnu) e Arjuna no campo de batalha de Kurukshetra. Krishna está revelando sua forma universal a Arjuna para mostrar-lhe sua verdadeira natureza divina e ensinar-lhe sobre seu dever como guerreiro.
Obs.: A tradução do inglês é de Rafael Arrais (2015), usando como base a tradução clássica do sânscrito para o inglês, feita por Sir Edwin Arnold (1885), conforme compilada pela American Gita Society.
Oppenheimer citou esse trecho durante uma entrevista em 1965 para descrever seus sentimentos após o teste bem-sucedido da primeira bomba atômica. Ele estava expressando seu profundo pesar pelo poder destrutivo da arma nuclear e comparando-se à figura divina Vishnu na forma universal como um ser que traz morte e destruição ao mundo.
O que pensar de quem sabe seu propósito, mas seu propósito foi entregue à sua sombra? Alguém que não integrou de fato a sua sombra mas foi engolido por ela como quem "olha pro abismo e lhe escapa que o abismo olha de volta". Seria melhor nada fazer? Seria POSSÍVEL nada fazer?
No filme Mr. Nobody: uma das coisas que o filme mostra, claro como cristal, é que "tudo permanece em potencial caso não se decida nada"... e isso é IMPOSSÍVEL tanto em termos de ação quanto como ideia, a sua proposta soa como negar o "devir"!
5-O Que É A MORTE?
Se você se ativer à lógica PURA o correto seria dizer que "a morte não é" porque a morte é a ausência de vida, é a cessação da vida, portanto ela nem "É" e nem "TEM" nada.
...Ainda assim: "qualquer que seja o sentido, esse é o sentido, ou seja, o sentido da vida existe obviamente em viver"."
Colocando em termos simples: o fato de algo ter sentido não implica que nós saibamos automaticamente qual é esse sentido. Então, estou abrindo uma brecha para um certo ceticismo aqui. "Qualquer que seja o sentido, esse é o sentido" porque o sentido EXISTE, ou seja, o sentido da vida EXISTE.
Sentido é "direção" e tudo que está vivo muda, ou seja, "se move" da potência ao ato (as coisas mudam para se tornar o que de fato são), e tudo que se move se move em direção a alguma coisa. Logo, não se acha sentido na vida ao perceber que a vida tem sentido e nem se chega primeiro à conclusão de que "o sentido da vida é viver" - você simplesmente vive e aí a vida vai em direção a alguma coisa.
Para bem, para mal, me parece que foi Heidegger quem melhor descreveu (entre os pensadores de meu conhecimento), a relação entre a morte e o sentido da vida:
"Morte e Transcendência
(...) a morte, a maior das certezas humanas e, paradoxalmente, a única cuja experiência direta nos é vedada por princípio, pois só temos experiência da morte do outro.
A morte portanto é vivida como possibilidade existencial, como algo que cresce e amadurece em nós à medida que vivemos. A morte é uma revelação fundamental, apesar de termos dela uma consciência indeterminada. Com isso acrescenta-se uma característica singular ao nosso modo de existir: o homem não apenas é um ente que está-aí, lançado no mundo, mas sobretudo está no mundo para a morte. Na medida em que a análise fenomenológica da existência, por abordar apenas a estrutura do nosso existir, não comporta uma esperança de vida futura, ser para a morte significa ser para o nada. O nada apresenta-se assim como possibilidade definidora da existência. Por mais absurdo que possa parecer - e o absurdo não é de forma alguma alheio à existência humana -, o nada é uma presença forte na estrutura existencial. A consciência autêntica enfrenta a morte não como uma eventualidade empírica, mas como algo pelo qual a nossa existência se define antes de tudo.
A lucidez frente à possibilidade da morte é própria da consciência resoluta. A resolução como característica existencial se expressa no modo como posicionamos nossas possibilidades, superando o presente imediato. Essa espécie de superação de nós mesmos em nosso estado presente é a preocupação, ou o cuidado, como atitude fundamental diante do mundo. Pela preocupação antecipamos nossos encontros com os diversos entes que nos rodeiam. Essa também não é uma característica acidental, mas algo que define intrinsecamente nossa situação no mundo. O homem é um ente cujo modo de ser fundamental é ser por antecipação. Ocupamo-nos previamente de tudo o que nos ocorre, ou seja, preocupamo-nos com tudo o que nos acontece. A preocupação é parte integrante do projeto pelo qual procuramos definir e escolher nossas possibilidades. Isso significa que nos projetamos para além do que somos e isso vem a ser o mesmo que transcendermos o que somos a cada momento. Por isso, a transcendência é ainda uma característica definidora da existência. Como a existência se define pelo projeto, existir é sobretudo construir o futuro e este é o significado básico do modo de ser por antecipação que distingue o homem dos dentes que são prisioneiros do presente. Mas isso significa que a existência relaciona-se fundamentalmente com o tempo.
Existência e Temporalidade
A primazia do tempo como modo existencial já é visível no projeto e na possibilidade, que fazem do futuro a dimensão primordial do tempo. Mas a morte é o horizonte e o limite do futuro. Para viver autenticamente a condição de ser para a morte, o existente humano deve retomar-se a cada momento, isto é, voltar a si, pois o homem é o único ente que pode realizar a união consciente entre o que é e o que já foi. Fazer-se presente, no sentido de viver autenticamente a sua situação, é sempre retroceder para si, o que faz do presente um misto de retomada do passado e de antecipação do futuro. A situação existencial é portanto inseparável da temporalidade: o tempo une os sentidos do existir e, por isso, a temporalidade é o sentido da existência. Ela torna possíveis todas as características existenciais.
O tempo para o homem tem um significado peculiar: a temporalidade humana não é uma soma de momentos, mas uma extensão compreensiva do passado, do presente e do futuro. O homem é um movimento temporal e a isso Heidegger chama História. O homem é o único ente histórico, o que faz com que o mundo habitado e preenchido pelo homem seja também, embora secundariamente, histórico. Somente existe História quando existe acontecimento: essa noção só pode ser compreendida como mobilidade das várias formas de acontecer. Existir é o mesmo que temporalizar-se. Cumpre-se assim a união compreensiva de ser e tempo, que estava na raiz do projeto filosófico heideggeriano de constituição de uma ontologia fundamental."
A morte seria uma fração do próprio sentido da vida. Para quem não está familiarizado com o conceito de "devir" na filosofia: se a morte é a ausência de sentido então, seu contraditório, a vida, OBRIGATORIAMENTE tem sentido! ...Qualquer que seja o sentido, esse é o sentido, ou seja, o sentido da vida existe objetivamente em viver e subjetivamente no "devir" de cada ser. O que nos leva à questão: se de fato o que estamos fazendo na vida é "aprender a morrer", aquele que existe deve revelar quem e o quê é de fato para realizar seu "devir" e a dignidade seria "morrer com honra"... mas COMO morrer com honra? Como (e talvez por que) não se tornar nem Walter White nem Oppenheimer nem o "Ubbermensch"?
6-O Que É Um Indivíduo? ...Ou "Como Morrer com Dignidade"
Se falar sobre "vida" exige de nós nos debruçar sobre o problema do sentido, falar sobre "morrer com dignidade" é um problema análogo, de mesma espécie; trata-se falar de individuação, de tornar-se quem se é de fato.
Se por um lado o significado etimológico da palavra "honra" remete à dignidade e ao respeito social, no uso comum, ela está relacionada aos princípios morais e éticos que regem o comportamento humano, já no contexto filosófico, a honra é vista como uma virtude moral que envolve o cultivo da excelência moral e do senso de dignidade pessoal; quando falamos de "dignidade" o sentido etimológico vem do latim "dignitas", que significa "valor" ou "mérito", o uso comum do termo na linguagem cotidiana refere-se à qualidade de ser digno(a) de respeito, valorização e tratamento justo, e o uso filosófico muitas vezes remete a um igual valor moral de todos os seres humanos, independentemente de suas características individuais, sendo usado, por exemplo, como base para a ideia de direitos humanos universais. E não penso em usar estes termos em nenhum destes sentidos... não totalmente. Quero me apropriar da força emocional destas palavras para destacar o que penso ser "morrer com honra, de forma digna".
Reconheço sim o valor humano de todos os seres humanos, mas desconfio que nem todos os seres humanos são "humanos" justamente por agirem como NPCs de videogame: aqueles personagens que existem apenas para fazer parte do cenário, mas que não são jogáveis; e aqui não uso a metáfora num possível "bom sentido" já que denotaria que não são manipuláveis quando, na realidade, penso que NPCs são exatamente o oposto: são tão manipuláveis a ponto de serem vazios enquanto seres humanos, deixaram de ser humanos plenos para ser humanos parciais, meros cenários. Um leão que age como um leão é um leão perfeito, mas um ser humano que não se individualiza, o que é?
Antes de pensar o que é um indivíduo, também podemos nos questionar "o que um indivíduo não é", e aqui vou deixar que uma outra pessoa, mais capaz, dê a resposta:
PARADOXOS DA SOLIDÃO CONTEMPORÂNEA
O homem está só, ainda que ande em meio à multidão; vive isolado, ainda que tenha contato com mais gente como nunca se teve na história; está perdido, mesmo instalado numa era em que a informação parece infinita. Este é o paradoxo da contemporaneidade e se manifesta na sensação de isolamento daquele que vive em aglomerados, que se associa a movimentos de massa e que tem acesso livre ao mundo inteiro.
Essa solidão moderna, porém, não é daquelas que existem nos que se encontram fisicamente longe dos outros; nem tampouco daquelas que invadem o espírito de quem se sente incompreendido em sua maneira de enxergar a vida. Trata-se de uma solidão existencial, que insiste em sufocar a alma de gente que vive com os outros, pensa como os outros, age como os outros e praticamente não possui nada que lhe distingua deles.
Era de se esperar que pessoas que se misturam à multidão, seguem os padrões culturais e da moda e se empenham para pensar segundo os ditames da ideologia do momento até sofressem de crise de identidade e de sentido, mas não que se sentissem sós. Se elas se esforçam por se ajustar às expectativas sociais é porque querem pertencer, querem evitar frustrar as expectativas da sociedade e, em consequência, perder as vias de acesso abertas por ela. No entanto, parece que quanto mais tentam fazer parte do grupo, mais sozinhas se sentem; quanto mais parecidas com o mundo, mais são ignoradas por ele; quanto mais imitam os padrões culturais, mais deslocadas parecem; quanto mais se acoplam, menos ajustadas se mostram.
Os homens se gabam da evolução de sua autoconsciência, mas há algo que, apesar dela, os tem impedido de escaparem de si mesmos. Parece que estão encarcerados dentro de suas próprias almas, ainda que seus corpos interajam com todo o resto. De fato, não conseguem libertar-se de sua escuridão interior e a única realização efetiva que a autoconsciência alcançou foi o clarividência de sua própria solidão.
Fonte: https://t.me/filosofiaintegral/1055
SOLIDÃO EM MEIO À MULTIDÃO
O solitário contemporâneo não é silencioso e melancólico. Pelo contrário, seu ambiente é rico de possibilidades, está sempre cercado por gente, sempre ocupado. Vive em meio a festas, encontros sociais, eventos, movimentos coletivos e todo tipo de associação. Pode-se dizer ─ por mais contraditório que pareça ─ que o solitário contemporâneo é alegre e disposto à realização.
Mas que tipo de solidão é essa que exteriormente se mostra ativa e festiva? É uma solidão que se manifesta somente nos intervalos da vida, quando todo o barulho da jornada e as ocupações do dia dão uma trégua. É uma solidão que foge de si mesma através de relação epidérmica com o mundo, buscando abrigo no burburinho, no riso fácil e nas conversas descartáveis.
O que a realidade mostra, porém, é que, apesar de toda a interação social, os homens estão encerrados dentro de si mesmos, olhando o mundo exterior como que por um periscópio. Estão trancafiados em suas próprias convicções, fechados em suas perspectivas pessoais, sufocados na limitação de seu mundo interno.
Ainda assim, a maior parte do tempo, sentem-se satisfeitos, pois esquecem sua realidade claustrofóbica ao manter-se em movimento junto com o mundo. No entanto, naqueles poucos momentos, quando parece que o universo exterior dá um descanso, começam a ouvir a voz que vem de dentro e percebem que estão sozinhos.
Esses momentos de silêncio aterrorizam-nos porque neles fica evidente que aquele movimento externo era fugaz, que o contato que se mantinha com o que há de fora era fátuo. No silêncio, fica muito claro que não restam muitas convicções que se sustentam, nem verdades que se podem dizer seguras. Percebe-se, principalmente, que o indivíduo fora deixado abandonado a si mesmo e que ele não é capaz de vencer sozinho esse insulamento.
Por isso, a única alternativa que esses homens existencialmente solitários têm é a de render-se à algazarra cotidiana. Pelo menos, assim, podem ter a ilusão de não estarem sós.
Fonte: https://t.me/filosofiaintegral/1056
Sendo assim, o que são "indivíduos"?
Indivíduos são seres auto-responsáveis, por isso são raros. Não interessa se você é um escravo como Epicteto ou um general como Napoleão: auto-responsabilidade é agir por si com que a vida lhe dá. Mesmo sendo possível ser auto-responsável em qualquer extrato social, a experiência da vida real mostra que isso é raro... Notem que não estou falando de reconhecimento da dignidade nem da honra porque estou separando "mérito e reconhecimento social do conceito que pretendo apresentar: uma individuação que seja autônoma e auto-responsável. Sendo tão claro quanto me é possível: Autonomia é o que você faz com o q a vida te entrega (sendo seu decidir e sua responsabilidade), não tendo a ver com ter as melhores e mais amplas condições, nem sequer tem a ver com "liberdade", mas com responsabilidade assim como na sugestiva anedota que Viktor Frankl faz a respeito da sociedade americana (individualista e, todavia, pouco "individuada", se me permitem o neologismo): se na costa leste temos a "estátua da liberdade" deveríamos também ter, na costa oeste, a "estátua da responsabilidade".
Alguém que quisesse praticar a auto-responsabilidade talvez não começasse com uma "ação" mas com algumas perguntas como: quais das minhas escolhas são de fato minhas e não determinadas por outros?, de onde vem as opiniões que defendo?, qual a origem das minhas crenças?, o que é o "certo" e o "errado"?, quais são minhas reais habilidades?, qual o sentido da MINHA vida?, quais sofrimentos as ações dos outros provocaram em mim e quais sofrimentos minhas ações provocaram aos outros? Mas, o que pensar de quem sabe seu propósito, mas seu propósito foi entregue à sua sombra? Alguém que não integrou de fato a sua sombra mas foi engolido por ela como quem "olha pro abismo e lhe escapa que o abismo olha de volta". De certa forma, eu me pergunto se o normal entre os "não-indivíduos" não seria paulatinamente ser "devorado" por uma "sombra coletiva", pegando emprestado de Carl Gustav Jung seu conceito de "sombra" enquanto parte da psique humana que contém os aspectos reprimidos, desconhecidos ou indesejados do indivíduo que, embora geralmente considerados negativos, são essenciais para uma compreensão completa de si mesmo.
Dias atrás eu estava vendo um comentário de um youtuber a respeito da obra de "Berserk" como uma obra metafísica tentando conciliar as visões de "mal absoluto" do Ocidente e Oriente de modo a imaginar "o que seria um mundo em que Deus não toca?" ...E a minha constatação diante das pessoas que atendo e conheço é que ESTE é o mundo que Deus não toca. Muita gente faz referência, por exemplo, a uma possibilidade de haver um "oceano moral" maior do que o judaico-cristão quando se faz referência ao übbermensch de Nietzsche, mas me parece que as pessoas já praticam desde sempre esse "oceano moral" deturpado que é basicamente a sobrevivência do mais forte e adivinha: não dá para todo mundo ser o mais forte! ...Daí a vida se torna um jogo em que compete-se pra ver quem consegue ser mais perverso com os outros sem culpa e esse se torna o padrão de sucesso. Gado seguindo pro abate.
E se "nem todas as pessoas têm alma mas se tornam alma"? Me lembro de C. S. Lewis na obra "Deus no Banco dos Réus" lidando com a questão do sofrimento animal como que só podendo haver salvação ao animal enquanto "animalidade" porque a salvação dos animais enquanto indivíduos dependeria de emergir deles um "ego" (ou algo análogo), o que só poderia emergir a partir da relação do animal com o ser humano (da mesma maneira que um ser humano só pode se tornar moralmente superior seguindo a proposta contrária à de Nietzsche: se tornando mais próximo de Deus). O mal tem sabores e formatos diferentes, tem "tons de cor". Você não precisa virar Hitler nem "O bandido da luz vermelha", às vezes basta uma rixa pra um demônio eclodir do que antes se cria ser uma "pessoa de bem". Lembrando que, como dizia Platão, "o mal deriva da ignorância". Estou escrevendo de memória, então a citação aqui não vai ser ips literis. Mas sim, há males que são decorrentes da total e completa falta de noção, da "joselitagem", da mais completa falta da mínima curiosidade e capacidade de imaginação de que TALVEZ (só talvez) exista um modo mais DIGNO de viver. Dignidade sem sacralidade é um círculo quadrado: sem uma moral profunda como ser mais do que um "homem-massa", um "animal político"? Onde poderei ver refletida a "imagem e semelhança de Deus"? Aldous Huxley alertou, conscientemente ou não, sobre isso em "Admirável Mundo Novo" quando escreveu:
"Do corte no pulso, o sangue ainda escorria. A pequenos intervalos caía uma gota, escura, quase sem cor na luz morta. Uma gota, outra, outra. . . 'Amanhã, e amanhã e ainda amanhã. . .' Tinha descoberto o Tempo, a Morte, e Deus."
Assim como nossa angústia é resultado de não sermos oniscientes, a busca da felicidade (sem honra) por si só já explica porque pessoas sucumbem à própria sombra ao invés de integrá-la, pois elas DESEJAM sucumbir.¹ A salvação é individual por um motivo: ou nos tornamos quem somos ou morreremos desumanizados e isso não tem a ver com COMO morremos, mas com o que deixamos para trás - não deixaremos de existir enquanto nossos rastros falarem por nós enquanto houver história e isso é indiferente se somos ou não lembrados.
Fazemos parte da cadeia causal que une todas as coisas e nada neste mundo dura para sempre... exceto as consequências, como quando você se esquece de alguém que conheceu mas não do que te ensinou porque aquilo se TORNOU parte de sua alma, para bem ou para mal. Este é o dilema humano e por isso viver uma vida que não é sua é a pior das tragédias: se o que fazemos em vida ecoa para a eternidade (acredite você ou não), ao corromper o intelecto este se torna incapaz da percepção da verdade, sua vontade se corrompe distorcendo a percepção do que seja o bem.² Talvez por isso Camões e Renato Russo entoaram: "É só o amor (é só o amor) que conhece o que é verdade!" ...Só me parece que, tal qual no lamento da canção "What Is Love" de Alex Band, se realmente é só o amor que sabe o que é verdade, ao nos distrairmos e afastarmos da verdade, o amor se torna algo que "estamos começando a esquecer".
Continua em "Amor, Sexo, Linguagem & A Origem dos Mal Entendidos"
& "Psicologia Existencial E Timidez: Entre A Ansiedade & A Despersonalização"
REFERÊNCIAS:
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